Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Mãe Coragem

Mariana Moreira

Publicação: 16/08/2011 08:12 Atualização: 16/08/2011 08:58

Lélia Abramo estreou aos 47 anos e arrebatou público e crítica em Eles não usam black-tie (no detalhe acima). Antônio Abujamra dirigiu a atriz em Raízes (1961):
Lélia Abramo estreou aos 47 anos e arrebatou público e crítica em Eles não usam black-tie (no detalhe acima). Antônio Abujamra dirigiu a atriz em Raízes (1961): "Mito não se explica. É!"

Ela pisou no palco profissional pela primeira vez aos 47 anos e arrebatou a cena de imediato. Na noite de sua estreia, na clássica montagem Eles não usam black-tie, direção de José Renato Pécora e texto de Gianfrancesco Guarnieri, ouviu a seguinte frase da colega Tônia Carreiro, à época já uma dama do teatro: “Parabéns. Nós passamos a vida toda tentando acertar e você acertou de primeira”. Além de conquistar lugar cativo no panteão cênico do país, Lélia Abramo desenvolveu a faceta política e garantiu direitos trabalhistas aos artistas em plena ditadura militar, mesmo sofrendo sucessivas retaliações. A atuação múltipla da artista, que completaria 100 anos em 2011, será lembrada hoje, às 20h, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no projeto Mitos do Teatro Brasileiro.

Para relembrar a colega, descendente de italianos e membro do clã dos Abramo (os irmãos Cláudio e Lívio Abramo eram jornalista e artista plástico, respectivamente), foram convidados os diretores Antônio Abujamra e João das Neves. Abujamra a dirigiu em 1961, ao lado de Cacilda Becker e Walmor Chagas, em Raízes, e guarda lembranças que considera infinitas. “Ela sabia fazer com alma, coração e todos os gestos de um corpo”, relembra. Outra característica marcante da amiga, ele define com uma frase de Antônio Cândido: Lélia nunca vergava a espinha. “Mito não se explica. É”, conclui.

Um dos fundadores do grupo Opinião, João das Neves admirava o trabalho da atriz desde a estreia, quando ela ganhou todos os prêmios possíveis e conquistou espaço no tablado e nas produções televisivas da época. A oportunidade de trabalharem juntos, no entanto, só surgiu na década de 1980. “Dirigiria A mãe, de Bertolt Brecht, para o trabalho de formatura dos alunos, e sugeri que tivessem contato com uma atriz do gabarito dela. Lélia aceitou com entusiasmo e trabalhou muito com os meninos. Além de imensa atriz, era um ser humano maravilhoso, tinha um carinho grande com os atores mais jovens. Era intensa e carinhosa”, relata.

O diretor acrescenta ainda que uma marca do trabalho de Lélia eram as minúcias que criava para as personagens. “Ela tinha cuidado com cada aspecto de cada personagem e da encenação. Discutia conosco cada pedacinho, cada particularidade de seu trabalho. Era um diálogo muito intenso e ela não se interessava apenas pelo seu papel, mas pelo todo”, elogia.

Salva por Cacilda
Os dois veteranos estarão acompanhados de dois atores da cidade: J. Abreu, codiretor, presente no palco em todas as edições do projeto, e da atriz e arte-educadora Antonia Artheme. Juntos, eles farão três cenas inspiradas na vida da homenageada. Na primeira, Antonia encarna Lélia, em um encontro com quatro homens de sua família: o avô, o pai, o irmão Athos e José Renato Pécora, fundador do Teatro de Arena, e descobridor do talento da atriz. Pécora viria dar seu depoimento no projeto, mas morreu em maio deste ano. Ao entrar na história, acaba sendo também homenageado durante a noite. “Nessa cena, falamos dos amores, da família, das guerras, das dificuldades”, adianta J. Abreu.

Na cena seguinte, Antonia vive Cacilda Becker, atriz e amiga de Lélia, que a resgatou de um dos porões do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), durante a ditadura. Passagem imprescindível, já que sua força combativa contra a repressão e as injustiças relacionadas à classe artística eram indissociáveis de sua atuação. “Ela tinha tanta crença em seus personagens quanto em sua ideologia política”, destaca Antonia.

Na cena final, os dois se encontram para relembrar esses momentos em que a militância passou a interferir na carreira, afastando-a de prêmios e papéis importantes. Quando presidia o Sindicato dos Artistas de São Paulo e lutava por melhores condições de trabalho, viu sua personagem na novela Pai herói ser assassinada subitamente. Ganhou um candango de atriz coadjuvante no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, com O caso dos irmãos Naves, em 1967, mas não foi convidada para receber o troféu.

Saga italiana

Filha de imigrantes italianos, Lélia foi criada em um casarão no bairro do Ipiranga, em São Paulo, ao lado dos seis irmãos, que também tiveram destaque em suas áreas de atuação. Trabalhou em um banco, em uma fábrica e formou-se jornalista. Aos 30 anos, começou a sentir um grave mal-estar, mas nenhum médico brasileiro conseguia diagnosticar a doença. De carona com a irmã, Lélia rumou para a Itália e, lá, descobriu que tinha cistos no ovário esquerdo. Mas o médico retirou o vário saudável em uma cirurgia e ela perdeu a esperança em ter filhos. Mesmo depois do tratamento, Lélia não conseguiu voltar para o Brasil. A Segunda Guerra Mundial havia estourado e as viagens ficaram prejudicadas. Doente e sem dinheiro, ela perambulou pelas ruas do país, vivendo de forma precária durante anos.

Ao voltar ao país, após 12 anos na Europa, ela finalmente passou a integrar grupos de teatro amador, até fazer parte do Teatro de Arena na peça que a tornaria célebre: Eles não usam black-tie. Em pouco tempo, a atriz era presença constante nos palcos, no cinema e nos teleteatros ao vivo. Nas novelas, foi eternizada como Bibiana, na minissérie O tempo e o vento. No teatro, interpretou personagens de Bertolt Brecht, Ionesco, Federico Garcia Lorca, Shakespeare, Beckett, entre outros. Fez 14 filmes e mais de 40 teleteatros.

Mas a militância que herdou da família e exercitou ao longo de toda a vida interromperam essa trajetória de sucesso. Por lutar pela classe artística, ela sofreu boicotes de empresas de comunicação. Conheceu Lula no período das greves históricas do ABC Paulista e foi fundadora histórica do Partido dos Trabalhadores (PT), lutando ativamente em todas as etapas da redemocratização do país. A atriz morreu em 2004, aos 93 anos, vítima de uma embolia pulmonar.


MITOS DO TEATRO BRASILEIRO
Direção, texto e concepção cênica: Sérgio Maggio e J. Abreu. Com Antônio Abujamra, João das Neves, Antonia Artheme e J. Abreu. Hoje, às 20h, no Centro Cultural banco do Brasil (CCBB) – SCES Trecho 2, Lote 22 – 3108-7600. Entrada franca, mediante retirada de ingressos com uma hora de antecedência. Não recomendado para menores de 12 anos.

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