Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Mil Cacildas

Projeto Mitos do Teatro Brasileiro saúda a memória da dama que modernizou os palcos com personagens marcantes

  • Ana Clara Brant

    Arquivo Pessoal
    Cacilda Becker modernizou o teatro brasileiro com interpretações que se superavam a cada peça: homenagem, às 19h30, no palco do CCBB

    Ricardo Fuji/Divulgação
    Leona Cavalli conta no CCBB o processo de criação de Cacilda no teatro

    Iano Andrade/CB/D.A Press - 15/9/10
    Bidô Galvão e Jones Schneider inspiram-se em Esperando Godot

    Andréa Vilas Boas/Divulgação
    A biógrafa MariaThereza Vargas volta a Brasília depois de 49 anos

    Brasília celebrava o seu primeiro aniversário. Era 21 de abril de 1961 e para comemorar a data, inaugurava-se o Teatro Nacional da nova capital. Mesmo inacabado, o espaço, mais uma obra de Oscar Niemeyer, recebeu a peça Em moeda corrente do país, de Abílio Pereira de Almeida, encenada pela companhia Teatro Cacilda Becker. Apesar da péssima acústica, os constantes ruídos externos e até uma queda de energia elétrica, o espetáculo foi um sucesso e aplaudido efusivamente pela plateia de 500 pessoas. “O que mais me chamou a atenção foi a presença dos operários que estavam construindo o teatro. Me lembro de vários deles com suas famílias mostrando orgulhosamente o que haviam feito. Foi bem interessante e uma noite linda”, lembra a pesquisadora e uma das maiores historiadoras das artes cênicas do país, Maria Thereza Vargas, que após 49 anos retorna hoje a Brasília para participar do Mitos do teatro brasileiro, projeto que a cada mês presta homenagem a uma personalidade teatral no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). No encontro de logo mais, a bola da vez é Cacilda Becker(1), considerada a grande atriz do teatro moderno brasileiro.

    Foram 28 anos de carreira, 68 peças, dois filmes e uma novela em 48 anos de vida interrompidos durante a encenação da peça Esperando Godot, quando sofreu um derrame cerebral no intervalo do espetáculo e acabou morrendo semanas depois. O falecimento, em junho de 1969, mereceu uma homenagem em poesia de Carlos Drummond de Andrade: “A morte emendou a gramática. Morreram Cacilda Becker. Não era uma só. Eram tantas... Era uma pessoa e era um teatro. Morreram mil Cacildas em Cacilda.”

    No palco do CCBB, além de Maria Thereza, que vai relembrar histórias da grande amiga e comadre, a atriz Leona Cavalli, que interpretou Cacilda Becker no teatro, numa montagem do diretor José Celso Martinez Corrêa, vai marcar presença. Para Leona, Cacilda sempre foi uma grande referência e dar vida à atriz nos palcos foi um trabalho complexo e de grande responsabilidade. “Ao mesmo tempo foi rico e profundo. Quando mudei para São Paulo, lembro que uma das primeiras coisas que li foi justamente a biografia que a Maria Thereza Vargas escreveu, Uma atriz: Cacilda Becker, e achei aquilo interessantíssimo. Me encantei pelo ser humano que ela era, as cartas que escrevia para a família, os amigos. Só depois no teatro é que fui ter contato com a Cacilda como grande intérprete mesmo”, conta Leona.

    Cenas da vida
    Enquanto Maria Thereza e Leona Cavalli vão participar de um bate-papo, os atores Jones Schneider e Bidô Galvão vão interpretar cenas inéditas criadas pelo jornalista e dramaturgo Sérgio Maggio envolvendo o universo de Cacilda. A primeira situação vai mostrar um encontro entre duas figuras fundamentais para a formação profissional da atriz: a diretora, empresária, dramaturga e crítica teatral Maria Jacintha e o também crítico e diretor Décio de Almeida Prado, aprofundando o engajamento político da atriz. “Era um lado que eu pouco conhecia dela. Sua luta contra a ditadura, sua preocupação com os atores e o teatro. E essa cena vai mostrar exatamente esse viés da Cacilda, a mulher política”, comenta Jones Schneider. Na segunda cena, será a relação afetiva de Cacilda Becker com o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Já a última encenação traz os personagens Vladimir e Estragon, da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, último trabalho da grande dama do teatro moderno brasileiro. Para Bidô Galvão, que sempre nutriu uma admiração por Cacilda, ela deixou um legado importante para o teatro e o projeto Mitos ajuda a preservar e a resgatar a história dessas grandes figuras artísticas. “Cacilda sempre foi um nome forte. Acredito que o principal legado dela seja sua relevância na modernização do teatro brasileiro. Pelo que já pesquisei, ela sempre se preocupou em buscar coisas novas, se aprimorar. O Mitos é extremamente didático ao mesclar esse aspecto do documentário, da mistura da palestra com o teatro; como se fosse uma aula-espetáculo”, opina.

    Para Maria Thereza Vargas, uma das biógrafas de Cacilda, o que mais impressionava, além de sua presença de palco, era sua dedicação e seriedade na vida e na carreira, e o fato de que, a cada trabalho, a atriz conseguia sobressair. “Ela tinha uma energia muito grande e uma capacidade de doação impressionante. Cacilda se superava e crescia a todo instante e o fato de ela praticamente ter morrido em cena prova o quanto amava o seu ofício e se dedicava a ele”, destaca a historiadora.

    1 - Mulher de luta
    Nascida Cacilda Becker Yáconis, em Pirassununga (SP), em 6 de abril de 1921, era filha do imigrante italiano Edmondo Yáconis e de Alzira Becker. Tinha apenas nove anos quando seus pais se separaram e sua mãe viu-se obrigada a criar as três filhas sozinha, uma delas a também atriz Cleyde Yáconis, que vive a Brígida na novela Passione, da TV Globo. Por este motivo, fixaram-se na cidade de Santos, onde a carreira de Cacilda veio se desenrolar na dança.

    Mitos do Teatro Brasileiro — Cacilda Becker
    Hoje, às 19h30, no Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Trecho 2, Lote 22), com os atores Jones Schneider e Bidô Galvão e tendo como debatedoras a historiadora Maria Thereza Vargas e a atriz Leona Cavalli. Participação: Silvana Di Faveri. Ingressos: Entrada franca. As senhas serão distribuídas na bilheteria com uma hora de antecedência. Telefone: 3310-7087. Não recomendado para menores de 12 anos. O CCBB disponibiliza ônibus gratuito saindo do Teatro Nacional a partir das 11h

  • terça-feira, 21 de setembro de 2010

    Cacilda por Drummond

    "A morte emendou a gramática.

    Morreram Cacilda Becker.

    Não era uma só. Era tantas.

    Professorinha pobre de Piraçununga,

    Cleópatra e Antigona

    Maria Stuart

    Mary Tyrone

    Marta de Albee

    Margarida Gauthier e Alma Winemiller

    Hannah Jelkes a solteira

    A velha senhora Clara Zahanassian

    Adorável Júlia

    Outras muitas, modernas e futuras

    irreveladas.

    Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo

    E um mendigo esperando eternamente Godot.

    Era principalmente a voz de martelo sensível

    martelando e doendo e descascando

    a casca podre da vida

    para mostrar o miolo da sombra

    a verdade de cada um nos mitos cênicos.

    Era uma pessoa e era um teatro.

    Morrem mil Cacildas em Cacilda".


    Salve, Cacilda!

    Cacilda Becker Yáconis (Pirassununga SP 1921 - São Paulo SP 1969). Atriz. Protagonista de vários espetáculos do Teatro Brasileiro de Comédia, fundadora da companhia que leva o seu nome, Cacilda Becker interpreta personagens antagônicos, como o moleque dePega Fogo, a velha de Jornada de um Longo Dia para Dentro da Noite, a devassa de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, a rainha de Maria Stuart, o clown de Esperando Godot. Indo da farsa à tragédia, do clássico ao moderno, é considerada, por alguns teóricos, a maior atriz do teatro brasileiro.

    Ainda menina, estuda dança e trabalha para manter a casa. Aos 20 anos, atua no Teatro do Estudante do Brasil - TEB, em 3.200 Metros de Altitude, de Julien Luchaire, e Dias Felizes, de Claude-Andre Puget, tendo como ensaiadora Esther Leão, em 1941. Ainda nesse ano, une-se à Companhia de Comédias Íntimas, de Raul Roulien, participando de uma série de espetáculos, entre eles, Trio em Lá Menor, de Raimundo Magalhães Junior, sob a direção de cena de Sadi Cabral. Faz rádio-teatro. Em 1943, ingressa no grupo criado por Décio de Almeida Prado, Grupo Universitário de Teatro - GUT, no qual participa de três espetáculos:Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente; Os Irmãos das Almas, de Martins Pena; ePequenos Serviços em Casa de Casal, de Mário Neme. Trabalha, em 1944, na Companhia de Comédias de Bibi Ferreira. Em 1945, volta ao GUT, atuando em Farsa de Inês Pereira e do Escudeiro, de Gil Vicente, direção de Décio de Almeida Prado. Colabora com Os Comediantes na remontagem de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, no papel de Lúcia, a irmã da protagonista, em 1947. Ainda nesse ano, sob o mesmo conjunto, participa também de Era Uma Vez um Preso, de Jean Anouilh, com direção de Ziembinski; Terras do Sem Fim, adaptação de Graça Mello do livro de Jorge Amado, dirigido por Zigmunt Turkov; eNão Sou Eu..., de Edgard da Rocha Miranda, mais uma encenação de Ziembinski.

    Em 1948, protagoniza A Mulher do Próximo, texto e direção de Abílio Pereira de Almeida, um dos espetáculos inaugurais do Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, em sua fase amadora. É a primeira profissional a ser contratada pela companhia. Está presente em quase todas as montagens do conjunto entre 1949 e 1955, com destaque para Nick Bar...Álcool, Brinquedos, Ambições, de William Saroyan e Arsênico e Alfazema, de Joseph Kesselring, ambos dirigidos por Adolfo Celi em 1949. Em 1950, participa de A Ronda dos Malandros, de John Gay, espetáculo polêmico de Ruggero Jacobbi.

    No Teatro das Segundas-Feiras, acontece a sua primeira consagração. Pega Fogo, de Jules Renard, inicialmente formando um programa triplo ao lado de outros dois textos, torna-se um grande sucesso, entrando em carreira no horário nobre do teatro e permanecendo em cartaz por muito tempo. Sua interpretação do moleque Poil de Carotte lhe vale um artigo apaixonado de Michel Simon, quando o espetáculo se apresenta no Teatro das Nações, em Paris. O crítico compara a atriz a Charlie Chaplin e Jean Louis Barrault, e, depois de dizer que ela rompera sua pretensa frieza de especialista fazendo-o chorar, procura a origem da emoção no "rosto emaciado", no "olhar em vírgula (como nos desenhos de Poulbot)", nos "gestos pletóricos de garoto infeliz e arrogante" e afirma: "Poil de Carotte não pode ter mais, para mim e para muitos outros, de agora em diante, outro rosto senão o seu".1

    Atua em Seis Personagens à Procura de Um Autor, de Luigi Pirandello, novamente dirigida por Celi, e A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, encenação de Luciano Salce, ambos em 1951. No ano seguinte, está em Antígone, de Sófocles (1º ato) e de Jean Anouilh (2º ato). Em 1955, é antagonista de sua irmã, Cleyde Yáconis, em Maria Stuart, de Schiller, novamente com o diretor Ziembinski.

    Despede-se do TBC em 1957 e funda um ano depois, com Walmor Chagas, Ziembinski, Cleyde Yáconis e Fredi Kleemann, o Teatro Cacilda Becker - TCB, no qual desempenha sua carreira durante 22 anos. Em 1958, está em Jornada de um Longo Dia para Dentro da Noite, de Eugene O'Neil, representando Mary Tyrone, personagem vinte anos mais velha do que ela; protagoniza A Visita da Velha Senhora, de Dürrenmatt, 1962; é premiada com medalha de ouro da Associação Brasileira de Críticos Teatrais - ABCT, como melhor atriz de 1965, pelas peças A Noite do Iguana, de Tennessee Williams, e O Preço de um Homem, de Steve Passeur.

    Sob a direção de Maurice Vaneau, interpreta a protagonista de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee, também em 1965. O crítico Décio de Almeida Prado relembra: "A prolongada sessão de terapia pela bebida, pela flagelação e autoflagelação que é Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? deu-lhe ensejo para uma de suas maiores criações. À medida que a sua voz e a sua dicção se tornavam pastosas, que as insinuações sexuais, deliberadamente vulgares, se explicitavam, aumentava a alucinante fusão estabelecida entre intérprete e personagem. Uma senhora, dias depois de assistir ao espetáculo, não se conteve quando lhe falaram em Cacilda Becker, "Bêbada", murmurou indignada. Cacilda se queixou, aliás, de espectadores que, terminada a peça, na hora dos agradecimentos, avançavam para o palco e a insultavam baixinho".2

    Os efeitos da ditadura militar sobre a atividade teatral fazem surgir uma Cacilda Becker militante das causas de sua classe. Demitida da TV Bandeirantes, sob a alegação de que suas interpretações são subversivas. A atriz assume a presidência da Comissão Estadual de Teatro de São Paulo, lugar que enfrenta a repressão em defesa dos direitos dos artistas e produtores. Quando, em 1968, o espetáculo Primeira Feira Paulista de Opinião sofre 71 cortes de censura no dia do lançamento, a atriz surge no proscênio e se responsabiliza pela apresentação do texto na íntegra, em um ato de rebeldia e desobediência civil. Sua convicção faz com que os censores e agentes federais presentes no teatro acatem sua decisão e assistam ao espetáculo.

    Durante uma sessão de Esperando Godot, de Samuel Beckett, com direção de Flávio Rangel, 1969, a atriz sofre um derrame cerebral e morre 38 dias depois. Ao se completar 10 anos de sua morte, Yan Michalski escreve em artigo para o jornal: "... não temos até hoje outra atriz-fenômeno como Cacilda, com a mesma generosidade de entrega, a mesma capacidade de mergulhar até o fundo em cada personagem, a mesma inquietação, tenacidade, a mesma coragem na composição, pedra por pedra, de um repertório coerente. [...] Uma pessoa com este carisma, com esta capacidade de falar legitimamente em nome de todo o teatro brasileiro, e sempre disposta a fazê-lo com firmeza e serenidade, talvez seja o que mais nos faz falta desde que Cacilda desapareceu [...]".3