Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Texto de Vanessa Goulart postado por Nicette Bruno


Foto de Edu Barroso


Bonita Homenagem

Participei de um evento em Brasília em homenagem à querida Dulcina de Moraes, minha neta Vanessa esteve comigo e escreveu um texto que divido com vocês agora:

O Sol de Dulcina

por Vanessa Goulart

O nosso país não tem memória, ou pelo menos ela anda tão fraca que precisa de uma dose cavalar de fosfosol. Será que o povo brasileiro sabe quem foi Dulcina de Moraes? Se perguntarmos pelas ruas sobre Dulcina garanto que poucos lembrariam da grande atriz, empresária e educadora.
Na última quarta-feira, tive a oportunidade de assistir a estréia de um projeto extremamente importante e oportuno: “Mitos do Teatro Brasileiro”, patrocinado e apresentado pelo Banco do Brasil, por enquanto só apresentado no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília. A proposta é trazer ao palco a trajetória de ícones do nosso teatro, na noite inicial a homenageada foi Dulcina de Moraes.
O diferencial é a mescla da linguagem teatral com a informação jornalística. A dramaturgia é assinada pelo jornalista Sergio Maggio e através de breves cenas a plateia conheceu momentos importantes e também curiosidades sobre a carreira de Dulcina.
Como convidadas da noite as atrizes Nicette Bruno e Françoise Fourton abrilhantaram a apresentação participando do talk – show que compõe a característica jornalística do evento. “Ela era um sol”, disse Nicette sobre a homenageada em uma noite repleta de emoção. Como mestres de cerimônia os atores brasilienses Jones Schneider e Luciana Martuchelli, antigos alunos de Dulcina, combinaram leveza e sensibilidade.
Através desta linguagem inovadora a plateia presente pode conhecer ou relembrar o trabalho de uma das grandes damas do nosso teatro. Dulcina abriu mão de sua companhia teatral de grande sucesso e foi construir um sonho, a Faculdade Dulcina de Moraes (Fundação Brasileira de Teatro). Escolheu Brasília como chão, terra de pioneiros como ela e abriu a cortina do grande espetáculo de sua vida. Todos nós sentimos o calor do sol que ela era
Viva Dulcina, viva o teatro brasileiro!
Abraços fraternos.

Aplausos e lágrimas para Dulcina












Texto de Carla Spegiorin/Fotos de Edu Barroso
O primeiro encontro do projeto Mitos do Teatro Brasileiro, realizado nesta quarta (26/05) no Centro Cultural Banco do Brasil, homenageou a figura mais importante do teatro brasiliense: Dulcina de Moraes

Uma década de meia sem Dulcina de Moraes (1908 - 1996) e ontem ela parecia viva e presente ao encontro que a homenageou no Centro Cultural Branco do Brasil Brasília. Patrocinado e apresentado pelo Banco do Brasil, o projeto Mitos do Teatro Brasileiro sustenta-se na pesquisa e na história para erguer no palco um século de teatro, a partir de seis artífices das artes cênicas nacionais começando por Dulcina de Moraes. As atrizes Nicete Bruno e François Forton não seguraram as lágrimas, assim como grande parte da plateia, que esteve presente para ouvir histórias da grande dama do teatro brasilense e uma das figuras mais importantes do teatro nacional.

Nicete soltou a voz e dispensou o uso de microfone para falar da dama. A atriz contou que começou a carreira de artística, aos 17 anos, em um teste com Dulcina e narrou como a atriz abdicou da carreira em ascensão para vir a Brasília construir a Fundação Brasileira de Teatro (FTB). Nicete revelou que, à época, a companhia teatral de Dulcina/Odilon era a mais respeitada, pois a atriz pregava que todos na equipe deviam ser respeitados – do iluminador à grande estrela do espetáculo. “Ela deixou o estrelato no Rio para vir batalhar pelo teatro no Brasil nesta cidade que hoje tão solenemente a homenageia”, contou Nicete, muito emocionada e sem esconder as lágrimas.

Forton, por sua vez, foi aluna de Dulcina e se graduou na primeira turma da Faculdade que hoje leva o seu nome, contou que Dulcina era uma mulher única no palco. “Certa vez em uma aula ela leu um texto com 32 personagens encenou cada um deles de maneira genial”, revelou a atriz que viveu parte de sua infância e juventude na capital da república.

Ao intercalar mediação cênica feita pelos atores brasilienses Jones Schneider e Luciana Martuchelli e as falas das atrizes convidadas, o público interagia com o elenco. Ali, nas barbas do palco, uma presença era notada e citada durante todo o encontro: Bê de Paiva, que foi amigo de Dulcina e é considerado uma lenda viva dos tablados, deu uma bela aula sobre o teatro brasileiro, evocando personalidades como Procópio Ferreira, Sérgio Britto, Nelson Rodriques e até JK. “Dulcina aboliu o ponto, acabou com a minha profissão, revolucionou o modo de fazer teatro no Brasil e era uma pessoa espetacular porque tratava todos de maneira igual”, falou Bê com voz embargada em alto e bom som, seguindo Nicete que, no início, havia abolido o microfone, colocando em prática a lição que aprendera com Dulcina. A plateia altern ou momentos de risadas e lágrimas praticamente o tempo todo. “Foi uma grande aula sobre parte da história do teatro nacional”, disse a atriz Sandra Cury, ex-aluna da Faculdade Dulcina de Moraes.

Diferencial do projeto, a mediação cênica foi toda sustentada por textos inéditos desenvolvidos pelo dramaturgo, jornalista e crítico de teatro Sérgio Maggio (Cabaré das Donzelas Inocentes). Para Maggio, Dulcina construiu um lugar sagrado na história do teatro brasileiro. No entanto, hoje, por motivos quase inexplicáveis no processo de formação da memória da cultura nacional, é um dos nomes que as novas gerações sequer ouviram falar.

A escolha de Dulcina de Moraes para abrir o projeto foi, também, uma homenagem do Centro Cultural Banco do Brasil aos 50 anos de Brasília. A atriz, diretora, empresária e educadora foi contagiada pelo sonho de criar a capital no centro do país e trouxe a Fundação Brasileira de Teatro para a cidade. Hoje, a instituição é patrimônio cultural do DF. “Fui aluno da FBT e sei o quanto custou o sonho para Dulcina de Moraes, que vendeu todo o patrimônio e morreu pobre para levar avante a missão de disseminar o estudo do teatro no ensino superior. É tudo muito especial. Na noite da minha formatura, Dulcina de Moraes morreu. Coube a mim conduzir a última homenagem”, lembra Jones Schneider.

O projeto Mitos do Teatro Brasileiro segue, uma vez por mês, até outubro homenageando Dercy Gonçalves (30 de junho com Carmem Verônica e Irís Bruzzi), Procópio Ferreira (28 de julho com Jorge Loredo e Bemvindo Sequeira), Nelson Rodrigues (18 de agosto com Bárbara Heliodora e Beth Goulart), Cacilda Becker (22 de setembro com Maria Thereza Vargas e Leona Cavalli) e Sergio Britto (20 de outubro com Sergio Britto). Fe cha assim o ciclo de um século de teatro. “A partir dessas grandes biografias, vamos traçar essa saga fantástica que é a construção do teatro brasi leiro, hoje um dos mais respeitados no mundo pela diversidade e identidade com os problemas nacionais”, acrescenta Sérgio Maggio.



· Acompanhe a pesquisa do projeto no blog mitosdoteatrobrasileiro.blogspot.com e siga-o no Twitter @mitosdoteatro e @cccbb_df

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Mitos do Teatro Brasileiro - Dulcina de Moraes


Evoé, Dulcina de Moraes!


Domingo de carnaval, 3 de fevereiro, Dulcina de Moraes completaria 100 anos. Apontada como a personalidade mais influente do teatro brasileiro no século 20, a atriz, diretora e educadora soube acompanhar a mudança das artes cênicas dos tempos tradicionais para a modernidade. Filha de grandes intérpretes, a cubana Conchita de Moraes e o português Átila de Moraes, Dulcina cresceu em ambiente teatral. Estreou aos 17 anos na companhia de Leopoldo Fróes, o grande ator das primeiras décadas do século 20. Estava ao lados dos jovens Procópio Ferreira e Jaime Costa, dois futuros grandes intérpretes da comédia brasileira. Na década seguinte, conhece o intelectual e empreendedor Odilon Azevedo e forma a Companhia Dulcina-Odilon, um marco no teatro nacional.

Dulcina traz para o Brasil novos autores, como Bernard Shaw e García Lorca. É a primeira atriz a intepretar Lorca em português. Faz Bodas de sangue e viaja mundo afora em sucesso avassalador. Na década de 40, aclamada como a primeira atriz brasileira, faz sucesso mundial com Chuva. Se brilha como atriz, propõe o fim de modelos obsoletos, como o uso do ponto (aquele profissional que sopra o texto para o ator da boca de cena). Muda a relação trabalhista ao promover as folgas às segundas, numa época que se tinha teatro todo dia.
Idealista, fala de ética profissional e da necessidade de se criar um curso superior em artes cênicas. Funda em 1955, a Fundação Brasileira de Teatro, no Rio, com professores do porte de Cacilda Becker e Ziembiski. Forma uma nova geração de intérpretes como Rubens Correa e Suely Franco. Revela autores a exemplo de Ariano Suassuana com O auto da Compadecida. Está no auge da atividade profissional quando se apaixona pelo sonho de Brasília. Transfere-se para cá onde investe todo o patrimônio. É a primeira grande investida nas artes cênicas da cidade. A Faculdade em Brasília revela grandes nomes do nosso teatro. Morre em 1996 completamente endividada, mas com o legado incalculável para o teatro brasileiro.

As gargalhadas de Dulcina - artigo 29/09/2005


Sérgio Maggio

A primeira vez em que entrei na Fundação Brasileira de Teatro fiquei impressionado com uma foto de Dulcina de Moraes. Com o olho direito esbugalhado e boca de diva, ela parecia me medir dos pés à cabeça. Lembro de nutrir um desejo intenso de que estivesse viva, expressiva e vigorosa como sugeria aquela imagem. Confesso que daquele dia em diante fiquei encantado com a personalidade da atriz, diretora, educadora e visionária. Tão envolvido que certa noite a encontrei em sonho. Tinha acabado de fazer uma reportagem sobre sua vida e obra. Ainda folheava as páginas da biografia escrita por Sérgio Viotti quando adormeci.


Dulcina estava exuberante como era descrita no livro. Eu conversava não sei o que e ela gargalhava; comentava algo de que nem faço idéia e dobrava-se em risos.Acordei me indagando. Por que Dulcina de Moraes estava imersa em felicidade absoluta se aqui, no mundo dos vivos, o tempo é de aridez? Quer um motivo para silenciar o riso? O acervo da atriz, matrona do teatro brasileiro, está ameaçado. Sete décadas de história estão entulhadas em um quartinho no subsolo da FBT.


Ali estão peças de figurino riquíssimo da Companhia Dulcina-Odilon. São vestidos, sapatos, chapéus, adereços, paletós. Um baú guarda cartas, fotos, cartazes e documentos que ajudariam o Brasil a conhecer melhor a história do seu teatro. Tudo é zelado, com limitações, pelos funcionários que chamam o cubículo de “moquifo da Dudu”.

Até hoje, desde a sua morte, em 1996, governo algum se indignou diante do tesouro incalculável.Não quero estragar a felicidade da Dulcina do meu sonho, mas sei de outra notícia triste. O teatro, que leva seu nome, precisa de reforma urgente. Desde 1992, envelhece sem intervenção. No palco, as tábuas apodrecem. No teto, a fiação está exposta e sobrecarregada. As poltronas, sucateadas.

A reforma está orçada em R$ 2 milhões, e a FBT mal tem dinheiro para pagar as despesas cotidianas. Para piorar, Dulcina de Moraes, a mulher que modernizou o teatro brasileiro, anda esquecida. Pouco se fala dela nas escolas, pouco se preserva da sua passagem pela terra.Diante disso, por que será que a atriz gargalhava? Seria por conta da estupidez dos que ficaram por aqui? Dulcina, volta aos meus sonhos e me explica o que parece inexplicável.

domingo, 16 de maio de 2010

Terra Vermelha


Dulcina de Moraes veio a Brasília para as comemorações do terceiro ano de criação da cidade. Chegou a convite de Carlos Mathias (então diretor da Fundação Cultural) e trouxe Oito mulheres, com elenco de estrelas (Nathália Timberg, Maria Sampaio, Iracema de Alencar, Suely Franco, Sonia Moraes, Maria Fernanda e Margarida Rei). Na nova capital federal, sentiu força impressionante brotar da terra vermelha. Desejou nascer junto com a cidade.
—Tive a impressão de estar plantadinha no topo do mundo.
Em 1972, chegou para ficar. De Brasília, não sairia mais. Ergueu a FBT no então Setor de Diversões Sul, hoje o conhecido Conic. Conta que fechou os olhos, rodou o dedo sobre a planta do terreno e pediu a Deus que a guiasse ao ponto certo para a construção. Colocou todo o dinheiro na obra de sua vida, que se arrastou por mais de 10 anos. Formou artistas, difundiu as suas idéias, enfrentou uma greve de meses, teve aviso de despejo do apartamento da 111 Sul pelo governo Collor. Resistiu bravamente, sempre com humor. Saiu de cena em 1996, quando morreu cheia de dívidas, porém com um legado imaterial incalculável.
— Eu sou, sempre fui, serei até o último momento, uma mulher de teatro. O teatro é a minha casa. O meu habitat. O meu oxigênio. Neste apartamento, eu apenas como alguma coisa. leio, durmo, me preparo para sair. Porque a minha verdadeira casa é a Fundação Brasileira de Teatro. E lá eu continuo vivendo no teatro. Porque as aulas são teatro. E eu estou contribuindo, como tantas outras pessoas, para distribuir conhecimento, a noção de responsabilidade do teatro. O prazer do teatro. Eu gostaria que meus alunos sentissem que as artes, sobretudo o teatro, além de ser uma atividade profissional, deve e pode ser uma fonte de alegria, de realização profissional, plena. Conseqüentemente, de felicidade.

Matrona idealista



Dulcina de Moraes chega idealista nos anos 1950. Falava da necessidade de ética no teatro. Sugeria a criação da Associação Brasileira de Teatro (ABT) e sonhava com a Fundação Brasileira de Teatro (FBT), que surgiu, em 1955, com time formado pela nata do teatro (Ziembinsky, Henriette Morineau, Joracy Camargo, Cacilda Becker, Adolfo Celi, Bibi Ferreira, Gianni Rato). Das suas salas de aulas, surgiram talentos a exemplo de Rubens Corrêa, Suely Franco, Ivan Albuquerque, Irene Ravache. Um dos programas da FBT era o Poeira das Estrelas, que reunia profissionais e estudantes em noite de gala. Havia também festival de amadores. A peça O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi encenada pela primeira vez nesse projeto

Amor de toda vida


Uma paixão à porta do teatro uniu Dulcina e Odilon. Os dois se apaixonaram numa turnê em Salvador. O enlace foi imediato, e a Companhia Dulcina-Odilon nasceu em 1934, no Rival, com o estrondoso sucesso de Amor, de Oduvaldo Viana. A parceria é auge na carreira da atriz. Na década de 1940, a pedido do ministro da Educação, Gustavo Capanema, a atriz organiza repertório com peças de Bernard Shaw (César e Cleópatra) e Garcia Lorca (Bodas de sangue), no Theatro Municipal do Rio. É a primeira atriz a encenar Lorca em língua portuguesa. Conhece o sucesso absoluto com Chuva (1945) e viaja em turnê para Portugal, Uruguai e Argentina. É apontada como a maior atriz do teatro brasileiro. À frente da companhia, decide então abolir a figura do ponto. Depois, institui as folgas às segundas-feiras. O teatro brasileiro está prestes a entrar na modernidade.
— O teatro brasileiro precisa ser moralizado. Não falo da moral de cada um, que já é coisa particular e não entra no âmbito das minha cogitações. Estou falando de moral de classe. É preciso desenvolver, se já tivermos, ou criar, se não conhecermos, a ética profissional dentro do teatro. E para tanto só haverá um meio: unir e ajudar


Documento maldito



À Dulcina de Moraes, deve-se o fim da “carteira de prostituta” dada às atrizes. Era um documento maldito, retirado na polícia, que permitia a mulher trabalhar na área de diversão. O começo da profissionalização no teatro brasileiro passou pelos sonhos de menina de 15 anos, que integrou a Companhia Brasileira de Comédia de Viriato Correia, Oduvaldo Viana e Niccolino Viggiani, grupo obstinado em encenar autores nacionais. À época, ela dividia as coxias com o pai, a irmã Edith e estupendas atrizes como Belmira de Almeida, Iracema de Alencar e Lucilia Péres.
Dois anos depois, Dulcina de Moraes faria teste para a cobiçada companhia de Leopoldo Fróes, o intérprete mítico dos anos 1920. Dia 7 de julho de 1925, ela, aos 17 anos, subia ao palco como estrela de Lua cheia, do francês André Birabeau. Era a época das companhias teatrais, que cruzavam o país de ponta a ponta, levando ao povo arte feita por atores de fé no ofício.
— Eu conhecia minha gente muito bem. O que está prejudicando o nosso teatro hoje é essa mania horrorosa das companhias formarem elencos para uma ou duas peças apenas, onde a maioria dos atores nunca trabalhou em conjunto, ninguém se conhece, o resultado fica sendo uma grande salada. O espetáculo se transforma numa coisa heterogênea, cheia de altos e baixos, muito mais baixos do que altos.

Mulher de grandes feitos


A saga de Dulcina de Moraes, salvaguardada na biografia escrita pelo amigo e ator Sérgio Viotti, pode ser contada em atos de uma montagem teatral. Do bebê faceiro à personalidade mais importante do teatro brasileiro do século passado, posto reconhecido publicamente pela dama Fernanda Montenegro,
Dulcina foi mulher de grandes feitos:
a) Tornou-se atriz elogiada mundo afora, em tempos sem a mídia da televisão para propagar a imagem da intérprete.
b) Ergueu repertório de autores contemporâneos na Companhia Dulcina-Odilon, empresa administrada em parceria com o marido, o ator Odilon Azevedo.
c) Lançou as premissas do ensino superior de artes cênicas com a criação da Fundação Brasileira de Teatro.
d) Revolucionou os modos de trabalho, eliminando a figura do ponto (aquele profissional que soprava o texto aos ouvidos dos atores) e estabelecendo a folga semanal às segundas, numa época que se tinha teatro todos os dias.
—Eu nasci no teatro, para o teatro, do teatro, e me sinto felicíssima com isso. O teatro me deu todas as grandes alegrias da vida, todas as emoções… Creio, acima de tudo, na eternidade do teatro. O teatro permanecerá, e nós com ele.

Menina predestinada


Nascida em 3 de fevereiro de 1908, em seio de família que carregava no gene 250 anos de tablado e sete gerações consecutivas de atrizes, a menina estava predestinada aos palcos. O casal Átila e Conchita de Moraes, intérpretes respeitados, viajava em turnê pelo interior do Rio de Janeiro, quando as dores de parto irromperam o trabalho no palco.
Em Valença, vinha ao mundo Dulcina, com o nome que homenageava a avó, também atriz. Com um mês de vida, ela já estava em cena no papel de uma boneca. A mãe enfeitou o berço com fitas coloridas, guizos e bolinhas. No auge da dramaticidade, com a briga dos protagonistas no palco, o bebê mexeu as pernas, os braços e soltou choro fraco. A platéia, que pensava em se tratar de um bibelô inanimado, desconfiou e dobrou-se de rir.
— Foi a primeira vez e única que, na minha carreira, não agi como profissional. Talvez seja por isso que eu seja uma das atrizes mais disciplinadas do teatro brasileiro.

Os sonhos de Dulcina


Sustentados por manequins de plásticos, os figurinos de uma atriz são expostos como obra de arte. Um deles, lê-se na etiqueta, foi prova para a personagem Sadie Thompson, cortesã da montagem Chuva (1945), texto de Somerset Maugham. Com apliques de bolas vermelhas costurados a mão em fino tecido branco e saia preta justíssima afunilada à cintura, o modelo foi copiado à exaustão por madames e inspirou confecção de boneca vendida à escadaria de um secular teatro em Lisboa, nos idos dos anos 1940. Ao lado dessa histórica peça, vestido amarelo-ouro de rabo de sereia cai até o chão, expondo apliques negros aveludados. A vestimenta serviu à sedutora Domitila de Castro, heroína de O imperador galante (1967), do dramaturgo brasileiro Raimundo Magalhães Jr.
Os dois modelitos são vestígios de memória daquela que foi a primeira dama do teatro brasileiro no século 20. Fazem parte do relicário de Dulcina de Moraes (1908 – 1996), atriz, diretora, educadora e empreendedora, que ajudou a modernizar as artes cênicas do país. Estão abrigados no terceiro andar da Fundação Brasileira de Teatro (FBT), situada no coração de Brasília. Higienizadas e recuperadas, as peças compõem pequeno lote que foi, recentemente, retirado da ação voraz do mofo e das traças. A maior parte, no entanto, está condenada a desaparecer com o passar dos dias. São cartas, diários, fotografias, documentos públicos, adereços e figurinos que se confundem com a evolução do teatro nacional. Fragmentos que ajudam a compor seis décadas dedicadas à arte de atuar.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O primeiro dia de aula

No primeiro dia de aula, Dulcina de Moraes entrava altiva e, com “olhar enigmático”, perguntava:
— O que você veio fazer aqui? Por que você quer fazer teatro? Só existe uma razão certa: o amor. Amor pelo teatro e pela profissão.
Os alunos ficavam desconcertados, entreolhavam-se “num silêncio trágico”.
— Ela entrava para assombrar nossas fisionomias… tentando arrancar alguma fagulha de inteligência de nosso mais tenro semblante. Dulcina tinha as respostas que eu queria ouvir. A esfinge de cabelo escarlate era uma mulher de altivez generosa sobre nossas convicções rudimentares, narra o ator, diretor e dramaturgo André Amaro, no livro Teatro Caleidoscópio.

A mestra Dulcina

Foto/Arquivo/FTB

Ao evocar a memória dos tempos de sala de aula na FBT, em Brasília, a atriz Françoise Forton começa a visualizar Dulcina de Moraes. Ela aparece vivíssima aos seus olhos. De óculos enormes, toda arrumada, com a boca vermelha de batom. Junto à imagem física, forma-se a mulher agitada, com sede para ensinar aos aprendizes o valor da ética, o amor e o respeito ao teatro.
— Sinto a minha perplexidade em estar diante dela. Lembro de ler para a classe uma peça fazendo todos os personagens, com a emoção de cada um deles. Era fantástico. Ela me levava ao palco e mostrava o cajado de Molière e o significado das três batidas. Depois, mostrava o seu acervo. Era fantástico, suspira a atriz que integrou a primeira turma de 1981.