Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Mil Dinas

DINA SFAT - MAGNETISMO E SEDUÇÃO

Dina Sfat foi uma das maiores atrizes brasileiras que teve o teatro, cinema e televisão. Dona de uma interpretação singular, com fortes emoções à flor da pele, dosadas por uma construção de texto numa voz inteligente, um olhar magnético e forte sedução na presença física tanto no palco, como através das lentes do cinema ou da televisão.
Falar de Dina Sfat traz sempre uma dor movida pela saudade. Seu magnetismo pessoal torna-a inesquecível, seu talento profissional fez dela uma das atrizes mais amadas e cultuadas pelo grande público e pela crítica. Viveu a maior parte da sua juventude e início da maturidade sob a mão pesada da ditadura militar, a qual combateu energicamente, sempre apoiando a esquerda perseguida na época, sem jamais se filiar a qualquer partido ou tendência.
Figura inquieta e polêmica, Dina Sfat sempre teve a coragem de dizer o que pensava e sustentar a sua visão de mundo e de Brasil, mesmo quando não agradava às correntes sociais ou ideológicas. Na sua vida particular era discreta, não se deixando levar pelos escândalos amorosos e pelo sensacionalismo dos holofotes da mídia. Foi casada 17 anos com o ator Paulo José, com quem teve três filhas: Bel Kutner, Ana e Clara.
Dina Sfat pertence à geração de atrizes que surgiu com o teatro engajado do início dos anos sessenta, que depois conquistou a televisão quando esta se firmou como veículo cultural no Brasil. Tornou-se a atriz preferida da mítica autora Janete Clair, e uma das mais requisitadas por Dias Gomes. Jamais se furtou a fazer papéis diferentes, rompendo com a tradição maniqueísta das heroínas das telenovelas, interpretando vilãs, prostitutas, mulheres sofredoras, todas centradas no seu jeito agudo e inteligente de ser e transmitir a sua arte.
Dina Sfat trazia uma beleza misteriosa, moldada a partir da personalidade. Olhos grandes, que portavam um olhar que penetrava na alma dos que se lhe pusesse na frente e do público, que por ela se deixava fascinar.
Infelizmente Dina Sfat partiu muito cedo, no auge da sua essência de mulher que se abria para a maturidade da vida. Em um país de pouca memória, deixou um legado rico e pronto para ser sempre redescoberto. Aos 50 anos de idade, Dina Sfat atravessou os palcos além das cortinas da vida, entrando para a galeria dos mitos do Brasil, sendo uma das mais carismática e talentosa atriz que já tivemos. Levou consigo a sua voz penetrante, a sua inquietude diante da vida, deixando-nos presos a uma saudade latente de uma grande mulher. Dina Sfat, com os seus olhos grandes e infinitos, seduz hoje os palcos do céu, os anjos da arte!

A Estréia no Teatro na Década de 1960

Dina Kutner de Souza nasceu em São Paulo, em 28 de outubro de 1938. Filha de imigrantes judeus poloneses, ninguém poderia imaginar que aquela menina aos 16 anos, quando começou a trabalhar em um laboratório de análises, tornar-se-ia uma das mais importantes atrizes brasileiras do século XX.
Sua estréia oficial seria na peça “A Rainha e os Rebeldes”, em São Paulo, em 1957, sob a direção de Maurice Francini. Profissionalizou-se a partir da peça “Antígone América”, em 1960, sob a direção de Antônio Abujamra. Depois do espetáculo, voltou ao amadorismo teatral, fazendo parte de um grupo estudantil do centro acadêmico da faculdade de engenharia da Universidade Mackenzie. No grupo fez, em 1962, duas peças de Bertolt Brecht: “Aquele Que Diz Sim, Aquele Que Diz Não”, sob a direção de Antônio Ghigonetto e “Os Fuzis da Senhora Carrar”, sob a direção de Emílio Di Biasi.
Desde sempre, Dina Sfat descobrira o talento para as artes, sonhando sempre em ser uma atriz. Em 1962 entrou em contacto com o histórico Teatro de Arena. Foi chamada, em 1963, para integrar o elenco da peça “O Melhor Juiz, o Rei”, de Lope de Vega, sob a direção de Augusto Boal. Muito jovem, e para evitar a exposição da família, a atriz mudou o nome Kutner para Sfat, uma homenagem à cidade natal da sua mãe. Nascia oficialmente, a atriz Dina Sfat.

Do Teatro Engajado à Luta Contra a Ditadura Militar

No Teatro de Arena, integraria o elenco de peças famosas dos anos 1960, como “Tartufo” (1964), de Molière; “Arena Conta Zumbi” (1965), musical de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, que lhe renderia o Prêmio Governador do Estado de São Paulo como melhor atriz. Ainda sob a direção de Augusto Boal, faria “O Inspetor Geral” (1966), de Nikolai Gogol; e, “Arena Conta Tiradentes” (1967), de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal.
Em 1967, Dina Sfat aceitaria um grande desafio, substituir a atriz Ítala Nandi no elenco da peça “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, encenada para o mítico Teatro Oficina, por José Celso Martinez Corrêa. Com esta peça, a atriz conquistaria não só o público paulistano, como a crítica do Rio de Janeiro.
No cenário político, o Brasil entrava para a fase mais obscura da sua história, quando os militares tomaram o poder através de um golpe de estado, em 1964.
As intervenções do Teatro de Arena e do Teatro Oficina, foram fundamentais para que não se calasse o artista, atuando sob o julgo da ditadura. É o chamado teatro engajado e politizado daquela década conturbada. Dina Sfat foi uma das atrizes do grupo que foi veemente em expressar as reivindicações pela liberdade e contra a opressão do regime. Sua inquietação diante da vida fez com que não abandonasse jamais a luta pela redemocratização do país enquanto a ditadura militar estivesse no poder; sua coerência inteligente, fez com que não se associasse a partido de esquerda algum, apesar de assumir as suas bandeiras publicamente.
Já nos anos 1980, quando a ditadura dava os seus últimos suspiros, Dina Sfat, então grande ícone da dramaturgia brasileira, ousava a dizer em público, a um poderoso militar, que tinha medo deles. Era uma afronta corajosa à truculência de um governo ilegítimo. Em 1984, chegou a anunciar que sairia candidata ao cargo de vice-presidente do Brasil pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), uma verdadeira declaração provocativa, visto que a sigla estava na clandestinidade, fazendo parte da chamada frente democrática do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).
Mesmo sendo vista pelos militares como líder feminista ligada à extrema esquerda, Dina Sfat jamais se filiou a qualquer sigla ou facção partidária. Foi uma mulher que soube observar o seu tempo e lutar contra a opressão, visando sempre a liberdade de um mundo melhor. Viveria poucos anos para ver os frutos da sua luta quando a democracia floresceu novamente no país, com o fim do regime militar em 1985.

A Atriz no Cinema

Já no inicio da carreira, Dina Sfat revelou o seu grande talento para atuar diante das câmeras. Marcou a sua estréia no cinema, em 1966, no filme “O Corpo Ardente”, de Walter Hugo Khouri.
Em 1969, Dina Sfat viveu com grande destaque e talento, a guerrilheira Cy, de “Macunaíma”, filme inspirado na obra homônima de Mário de Andrade, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade. Na película, contracenava com o ator Paulo José, velho conhecido dos tempos do Teatro de Arena, e a partir de então, oficializam uma relação estável de marido e mulher.
No cinema, a atriz atuaria em clássicos como “Álbum de Família” (1981), filme de Braz Chediak, baseado na obra homônima de Nelson Rodrigues; “Eros, o Deus do Amor” (1981), de Walter Hugo Khouri; “Das Tripas Coração” (1982), de Ana Carolina. Seu último filme, “O Judeu”, de Jom Tob Azulay, baseado na vida de Antônio José da Silva, escritor luso-brasileiro do século XVIII que morreu na fogueira da inquisição, foi feito em Portugal, na segunda metade da década de 1980, já com a atriz doente. Inacabado por falta de verba, o filme só iria estrear em 1996, sete anos após a morte da atriz.
A dimensão dramática de Dina Sfat alcançava a luz das telas com um magnetismo que poucas atrizes brasileiras conseguiu. Seu olhar domina o grande ecrã como se hipnotizasse a platéia em um fascínio singular.

Grande Estrela da Televisão Brasileira

Mas foi através da televisão, que Dina Sfat conquistou o amor de todos os brasileiros. Viveu personagens que marcaram época na história das telenovelas. Mesmo diante do grande sucesso televisivo, jamais se deixou seduzir por personagens lineares e caricatos. Arriscou grandes papéis, sem as amarras das heroínas habituais dos teledramas.
Sua estréia na televisão brasileira foi na novela “O Amor Tem Cara de Mulher”, em 1966, de Cassiano Gabus Mendes, baseada no original de Nenê Castellar, produzida pela extinta TV Tupi. Para a emissora paulista, fez ainda “Ciúme” (1966), de Thalma de Oliveira, e “A Intrusa” (1967), escrita por Geraldo Vietri. Passou pela extinta TV Excelsior, em “Os Fantoches” (1967), de Ivani Ribeiro. Em 1969, foi dirigida por Daniel Filho, na novela “Os Acorrentados”, de Janete Clair, feita sob encomenda do diretor no período que se desentendeu com a TV Globo, e, exibida pela TV Record e pela TV Rio.
A atuação de Dina Sfat no filme “Macunaíma” chamou a atenção de Dias Gomes, que a convidou, em 1970, para protagonizar a sua novela “Verão Vermelho”. Foi a estréia da atriz na TV Globo, coberta de grande sucesso, fazendo com que ela permanecesse na emissora carioca até a sua morte, em 1989. Durante as gravações da novela, a atriz ficou grávida da sua primeira filha, Bel Kutner. Magistralmente, fez outra grande personagem de Dias Gomes, na novela “Assim na Terra Como no Céu” (1970), tornando-se uma das atrizes preferidas do dramaturgo.
Em 1971, voltaria a interpretar uma personagem de Janete Clair, em “O Homem Que Deve Morrer”, ao lado de Tarcísio Meira e Glória Menezes. A partir de então, a autora requisitaria a sua presença em vários papéis marcantes, feitos sob medida para ela, como a densa e louca Fernanda, de “Selva de Pedra” (1972), personagem que ganhou grande popularidade na época, abalando o público brasileiro com a sua insanidade passional. Dina Sfat teve nesta personagem, a possibilidade de desenvolver todo o seu potencial delineado pela paixão que emanava do seu eu.
Em 1975, fez uma pequena participação especial na novela “Gabriela”, de Walter George Durst, baseada na obra de Jorge Amado. Apesar de aparecer apenas nos primeiros capítulos, vivendo a prostituta Zarolha, a atriz dominou a cena, obtendo um grande sucesso entre o público. Walter Avancini, o diretor da novela, era o preferido de Dina Sfat, que dizia, jamais recusar qualquer papel sendo proposto por ele.
Em 1977, Janete Clair escreveu um papel sob medida para a atriz, a fascinante Amanda, protagonista da novela “O Astro”. O folhetim tornou-se um clássico da teledramaturgia brasileira. Dina Sfat terminou a década de 1970 como contratada exclusiva da TV Globo, uma honra só para os grandes astros da época, Tarcísio Meira, Glória Menezes, Francisco Cuoco e Regina Duarte.
Dina Sfat participou da última novela escrita por Janete Clair, “Eu Prometo”, em 1983. Na trama, tinha como uma das suas filhas, a então estreante Malu Mader.
Em 1979 aceitou o desafio de fazer Paloma Gurgel, personagem central da novela "Os Gigantes", de Lauro César Muniz. Texto difícil, pouco carismático, teve a rejeição do público e da própria atriz. Mesmo assim, no papel de uma mulher que cometia eutanásia no irmão gêmeo e suicidava-se para fugir às leis e à prisão, Dina Sfat teve um dos momentos mais densos e sublime do seu esplendor dramático dentro da televisão brasileira.
Seu último trabalho na televisão foi a Laura de “Bebê a Bordo”, em 1988, novela de Carlos Lombardi. Bastante debilitada pelo câncer, a atriz lutou bravamente para concluir este que ela sabia, seria o seu último trabalho. Acometida por fortes dores, a sua participação foi bastante reduzida na trama, que ela concluiu bravamente poucos meses antes de vir a falecer. Sua passagem pela televisão, foi um dos maiores marcos da história das telenovelas. Daniel Filho costuma dizer que, Dina Sfat muitas vezes reclamava e odiava fazer determinados personagens, mas jamais os interpretara mal.

A Personalidade

Preferida dos grandes autores, diretores, críticos e público, Dina Sfat seduziu o Brasil e os países para onde a teledramaturgia brasileira foi exportada. Era uma mulher que jamais deixou que se lhe invadisse a privacidade, sendo uma mãe atenciosa e dedicada às três filhas, Bel, Ana e Clara, frutos do seu casamento com Paulo José, que durou 17 anos. Na intimidade, a estrela dava passagem para a mãe amorosa e atenciosa.
Na vida pública, suas frases desencadearam grandes polêmicas, como a criada com os homossexuais, quando declarou que os teatros estavam a ser tomados por eles, não restando mais espaço para ninguém. A declaração foi feita com humor, não com homofobia, numa época que estreavam várias peças com temática homossexual pelos palcos do Brasil. O público gay, que lhe tinha grande adoração, reagiu e ela, inteligentemente, explicou o que tinha dito.
Em 1985, tentando uma pausa nas novelas e no teatro, ela decidiu dedicar o ano às filhas, partindo com elas para Portugal, onde fixaria residência por algum tempo. Sua viagem pela Europa foi interrompida pela descoberta de um câncer, em 1986. Lutadora, Dina Sfat decidiu por adotar tratamentos não convencionais no combate à doença, o que teve a desaprovação dos amigos, tementes por sua saúde e pela expansão da doença.
Mesmo doente, a atriz jamais deixou de trabalhar. Em viagem de tratamento à União Soviética, ao lado de Daniel Filho, realizou o documentário “Dina Sfat na União Soviética” (1988), que falava entre outras coisas, da então incipiente Perestroika.
De volta ao Brasil, lançou-se de cabeça na novela “Bebê a Bordo”, onde atuou já bastante debilitada. A atriz sabia que tinha chegado ao crepúsculo de uma vida excepcional, voltada para os palcos e à arte, e trazia como sonho encerrar aquele, que seria o seu último trabalho. Aos poucos, a sua participação na novela foi reduzida, mas ela encerrou o trabalho bravamente, com a dignidade que lhe era peculiar. O último capítulo de “Bebê a Bordo” foi ao ar em 11 de fevereiro de 1989, Dina Sfat veio a falecer em 20 de março daquele ano, aos 50 anos de idade. Pouco tempo antes de morrer, lançou a sua autobiografia “Dina Sfat – Palmas Pra Que Te Quero”, escrita em parceria com a jornalista Mara Caballero, mais uma vez lançando polêmicas, a última de uma grande carreira, feita por uma grande mulher, movida pela arte e pela paixão. Ninguém lhe herdou a técnica cênica, Dina Sfat foi única no cenário brasileiro. Sedutoramente inesquecível!

Televisão

Telenovelas:

1966 – O Amor Tem Cara de Mulher (TV Tupi)
1966 – Ciúme (TV Tupi)
1967 – A Intrusa (TV Tupi)
1967/1968 – Os Fantoches (TV Excelsior)
1969 – Os Acorrentados (TV Record)
1970 – Verão Vermelho (TV Globo)
1970/1971 – Assim na Terra Como no Céu (TV Globo)
1971/1972 – O Homem Que Deve Morrer (TV Globo)
1972/1973 – Selva de Pedra (TV Globo)
1973/1974 – Os Ossos do Barão (TV Globo)
1974/1975 – Fogo Sobre Terra (TV Globo)
1975 – Gabriela (TV Globo)
1976 – Saramandaia (TV Globo)
1977/1978 – O Astro (TV Globo)
1979/1980 – Os Gigantes (TV Globo)
1983/1984 – Eu Prometo (TV Globo)
1988/1989 – Bebê a Bordo (TV Globo)

Minisséries:

1982 – Avenida Paulista (TV Globo)
1984 – Rabo de Saia (TV Globo)

Séries:

1971 – A Pérola (Caso Especial – TV Globo)
1972 – Sombra de Suspeita (Caso Especial – TV Globo)
1973 – As Praias Desertas (Caso Especial – TV Globo)
1973 – O Preço de Cada Um (Caso Especial – TV Globo)
1976 – Quem Era Shirley Temple? (Caso Especial – TV Globo)
1978 – O Caminho das Pedras Verdes (Caso Especial – TV Globo)
1978 – A Morte E a Morte de Quincas Berro D’Água (Caso Especial – TV Globo)
1979 – Aplauso – Episódio Véu de Noiva (TV Globo)
1980 – Malu Mulher – Episódio A Trambiqueira (TV Globo)
1983 – Mandrake (Caso Especial – TV Globo)

Cinema

1966 – O Corpo Ardente
1966 – Três Histórias de Amor
1968 – Edu, Coração de Ouro
1968 – A Vida Provisória
1969 – Macunaíma
1970 – Perdidos e Malditos
1970 – Jardim de Guerra
1970 – Os Deuses e Os Mortos
1971 – O Barão Otelo no Barato dos Bilhões
1971 – Gaudêncio, o Centauro dos Pampas
1971 – O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura Brasil
1971 – A Culpa
1973 – Tati, A Garota
1981 – Eros, O Deus do Amor
1981 – Álbum de Família
1982 – O Homem do Pau-Brasil
1982 – Tensão no Rio
1982 – Das Tripas Coração
1988 – Fábula de la Bella Palomera
1996 – O Judeu (feito em 1988)

Teatro

Interpretação:

1957 – A Rainha e os Rebeldes
1960 – Antígone América
1962 – Aquele Que Diz Sim, Aquele Que Diz não
1962 – Os Fuzis da Senhora Carrar
1963 – O Melhor Juiz, o Rei
1964 – O Filho do Cão
1964 – Depois da Queda
1964 – Tartufo
1965 – Arena Conta Zumbi
1966 – O Inspetor Geral
1967 – Arena Conta Tiradentes
1967 – O Rei da Vela
1967 – Os Inconfidentes
1970 – Black Comedy
1973 – Dorotéia Vai à Guerra
1974 – O Colecionador
1975 – A Mandrágora
1977 – Seis Personagens à Procura de Um Autor
1979 – Murro em Ponta de Faca
1980 – Transaminases
1981 – As Criadas
1982 – Hedda Gabler
1984 – A Irresistível Aventura
1986 – Florbela Espanca (Encenada em Portugal)

Produção:

1982 – Hedda Gabler
1986 – Ninguém Paga, Ninguém Paga

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domingo, 30 de outubro de 2011

Dina Sfat brilhou em O rei da Vela

O rei da vela

Manifesto Oficina

José Celso Martinez

Última Hora, 5 de fevereiro de 1968.

Nós somos muito desenvolvidos para reconhecer a genialidade da obra de Oswald. Nosso ufanismo vai mais facilmente para a badalação do óbvio sem risco do que para a descoberta de algo que mostre a realidade de nossa cara verdadeira. E é verdade que a peça não foi levada nem até agora, nem a sério. Mas hoje que a cultura internacional se volta para o sentido da arte como linguagem, como leitura da realidade através das próprias expressões de superestrutura que a sociedade espontaneamente cria, sem mediação do intelectual (história em quadrinhos, por exemplo) a arte nacional pode subdesenvolvidamente também, se quiser, e pelo óbvio, redescobrir Oswald. Sua peça está surpreendentemente dentro da estética mais moderna do teatro e da arte visual. A superteatralidade, a superação mesmo do racionalismo brechtiano através de uma arte teatral síntese de todas as artes e não-artes, circo, show, teatro de revista etc.

A direção será uma leitura minha do texto de Oswald e vou me utilizar de tudo que Oswald utilizou, principalmente de sua liberdade de criação. Uma montagem tipo fidelidade ao autor em Oswald é um contra-senso. Fidelidade ao autor no caso é tentar reencontrar um clima de criação violenta em estado selvagem na criação dos atores, do cenário, do figurino, da música etc. Ele quis dizer muita coisa, mas como mergulhou de cabeça, tentando fazer uma síntese afetiva e conceitual do seu tempo, acabou dizendo muito mais do que queria dizer.

A peça é fundamental para a timidez artesanal do teatro brasileiro de hoje, tão distante do arrojo estético do Cinema Novo. Eu posso cair no mesmo artesanato, já que há um certo clima no teatro brasileiro que se respira, na falta de coragem de dizer e mesmo possibilidade de dizer o que se quer e como se quer.

Eu padeço talvez do mesmo mal do teatro do meu tempo, mas dirigindo Oswald eu confio me contagiar um pouco, como a todo o elenco, com sua liberdade. Ele deflorou a barreira da criação no teatro e nos mostrou as possibilidades do teatro como forma, isto é, como arte. Como expressão audio-visual. E principalmente como mau gosto. Única forma de expressar o surrealismo brasileiro. Fora Nelson Rodrigues, Chacrinha talvez seja o seu único seguidor sem sabê-lo.

O primeiro ato se passa num São Paulo, cidade símbolo da grande urbe subdesenvolvida, coração do capitalismo caboclo onde uma massa enorme, estabelecida ou marginal, procura através da gravata ensebada se ligar ao mundo civilizado europeu. Um São Paulo de dobrado quatrocentão, que somente o olho de Primo Carbonari consegue apanhar sem mistificar. O local da ação é um escritório de usura, que passa a ser a metáfora de todo um país hipotecado ao imperialismo. A burguesia brasileira lá está retratada com sua caricatura – um escritório de usura onde o amor, os juros, a criação intelectual, as palmeiras, as quedas d’água, cardeais, o socialismo, tudo entra em hipoteca e dívida ao grande patrão ausente em toda ação e que faz no final do ato sua entrada gloriosa. É um mundo kafkiano, onde impera o sistema da casa. Todo ato tem uma forma pluridimensional, futurista, na base do movimento e da confusão da cidade grande. O estilo vai desde a demonstração brechtiana (cena do cliente) ao estilo circense (jaula), ao estilo de conferência, teatro de variedades, teatro no teatro.

O segundo ato é o ato da Frente Única Sexual passado numa Guanabara. Utopia de farra brasileira, uma Guanabara de telão pintado made in the States, verde e amarela. É o ato de come vive, como é o ócio do burguês brasileiro. O ócio utilizado para os conchavos. A burguesia rural paulista decadente, os caipiras trágicos, personagens de Jorge de Andrade e Tenessee Williams vão para conchavar com a nova classe, com os reis da vela e tudo sob os auspícios do americano. A única forma de interpretar essa falsa ação, essa maneira de viver pop e irreal, é o teatro de revista, a Praça Tiradentes. Assim como São Paulo é a capital de como opera a burguesia progressista, na comédia da seriedade da vida do businessman paulistano, na representação através dos figurinos engravatados e da arquitetura que, como diz Levy-Strauss, parece ter sido feita para se rodar um filme. O Rio, ao contrário, é a representação, a farsa de revista de como vive o burguês, a representação de uma falsa alegria, de vitalidade que na época começava na Urca e hoje se enfossa na bossa de Ipanema.

O terceiro ato é a tragicomédia da morte, da agonia perene da burguesia brasileira, das tragédias de todas as repúblicas latino-americanas com seus reis tragicômicos vítimas do pequeno mecanismo da engrenagem. Um cai, o outro o substitui. Forças ocultas, suicídios, renúncias, numa sucessão de abelardos que não modifica em nada as regras do jogo. O estilo shakespeareano interpreta em parte principalmente através de análises do polonês Jan Kott esse processo, mas o mecanismo das engrenagens imperialistas – um mecanismo não é o da história feudal, mas o mecanismo um pouco mais grotesco, mesmo porque se sabe hoje que ele é superável, passível de destruição. A ópera passou a ser forma de melhor comunicar este mundo. E a música do Verdi brasileiro, Carlos Gomes, “O Escravo” e o nosso pobre teatro de ópera, com a cortina econômica de franjas, douradas, pintadas, passam a ser a moldura desse ato.

Aparentemente há desunificação. Mas tudo é ligado às várias opções de teatralizar, mistificar um mundo onde a história não passa do prolongamento da história das grandes potências. E onde não há ação real modificação na matéria do mundo, somente o mundo onírico onde só o faz-de-conta tem vez.

A unificação de tudo formalmente se dará no espetáculo através das várias metáforas presentes no texto, nos acessórios, no cenário, nas músicas. Tudo procura transmitir essa realidade de muito barulho por nada, onde todos os caminhos tentados para superá-la até agora se mostram inviáveis. Tudo procura mostrar o imenso cadáver que tem sido a não-história do Brasil destes últimos anos, à qual nós todos acendemos nossa vela para trazer, através de nossa atividade cotidiana, alento. 1933-1967: são 34 anos. Duas gerações pelo menos levaram suas velas. E o corpo continua gangrenado.

Minha geração, tenho impressão, apanhará a bola que Oswald lançou com sua consciência cruel e anti-festiva da realidade nacional e dos difíceis caminhos de revolucioná-la. Ela não está ainda totalmente conformada em somente levar sua vela. São os dados que procuramos tornar legíveis em nosso espetáculo. E volto para meu trabalho. E volto para meu trabalho, para a redação do espetáculo manifesto do Oficina. Espero passar a bola para frente com o mesmo impulso que a recebi. Força total. Chega de palavras: volto para o ensaio.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Augusto Boal - Força nas redes sociais

O teatro brasileiro no mundo tem um nome: Augusto Boal.
Acabei de assistir a uma belíssima homenagem do projeto Mitos do Teatro Brasileiro a Augusto Boal. Sérgio Maggio, se superou em todas as homenagens anteriores com um trabalho de direção, pesquisa e dramaturgia. Parabéns aos grandes atores Silvia Paes e J. Abreu, grande trabalho e também parabéns a todos nós que fomos atores nesta noite deste grande espetáculo.
Rose Gonçalves
Valeu muito, Sérgio Maggio! Obrigada Ccbb Brasília! Gostei de ver a querida Silvia Paes em ação e de saber que ela oferecerá curso de extensão sobre Teatro do Oprimido, na UnB. Adorei saber das novidades sobre o Instituto Augusto Boal ceder o acervo em comodato à UFRJ. Grande, profa Dra. Eleonora Camenietzki! Me diverti (e, como sempre aprendi) muuuuito, com os mestres Amir Haddad e Aderbal Freire Filho. E ainda bati papo sobe o Théâtre du Soleil com Cecília Boal, finíssima!!! Serginho, beijos mil! Precisamos tomar um café e pensar em coisas a fazer juntos.

Flávio Monteiro Rocha
Eu só queria Parabeniza-lo mais uma vez pelo belissimo trabalho que leva ao público brasileiro, mostrando suas grandes reliquias do Teatro Brasileiro, juntando as várias formas de fazer teatro! Colocando para nós artistas essa porta mágica que ao abrirmos descobriremos um mundo belissimo que nos faz crescer como atores e atrizes.

Michelle Bastos
Poucas vezes este ano eu tive o prazer de passar uma noite tão sublime e inspiradora dentro de um teatro. Parabéns Sérgio Maggio pela ideia e excelente execução do MITOS DO TEATRO BRASILEIRO! Estou torcendo para que o projeto ainda tenha muitos e muitos anos de edição!

Adeilton Lima Querido, posta as fotos!!! =)
19 de Outubro às 02:51 · Curtir (desfazer) · 2 pessoas

Doriel Francisco Parabens Sérgio Maggio, esse projeto é maravilhoso ontem foi fantastico. Boal é de maissssssssss
19 de Outubro às 08:32 · Curtir (desfazer) · 1 pessoa

Nirton Venancio Foi realmente uma noite inesquecível, meu caroSérgio! Queria que a noite não acabasse. Boal estava ali, em todos nós atores e espectadores. Lembrei-me muito de você, Adeilton: lembrança recorrente quando me encontro com o Teatro. Parabéns mais uma vez, Sérgio, pela idealização desse projeto.
19 de Outubro às 09:25 · Curtir (desfazer) · 3 pessoas

Áurea Liz Carvalho Parabéns Sérgio Maggio, por esse projeto maravilhoso, que movimenta Brasília. Beijo grande e Merda sempre!
19 de Outubro às 09:42 · Curtir (desfazer) · 2 pessoas

Jeff Moreira sucesso sempre
19 de Outubro às 10:10 · Curtir (desfazer) · 1 pessoa

Juliana Drummond Saí novamente inundada de emoções e muitas reflexões...! Quero um mundo melhor! Quero verde-vida esperança! Chorei na mesma intensidade da chuva da especial noite! Muito, muito, muito grata! Evoé amados amigos de palco e vida!
19 de Outubro às 10:38 · Curtir (desfazer) · 2 pessoas

Luana Fonteles Ontem foi um presente muito especial! Comovida até agora com tudo o que foi dito e vivido, e muito impressionada com o depoimento de Sérgio Maggio, um guerreiro! Muito feliz em fazer parte deste trabalho grandioso!
19 de Outubro às 13:02 · Curtir (desfazer) · 1 pessoa

Teí Silva Buaaaaaaaa, não pude ir....mais no próximo....
19 de Outubro às 13:09 · Curtir (desfazer) · 2 pessoas

Reduto Das Estrelas PARABÉNS PELO SUCESSO!!! ;)
19 de Outubro às 13:42 · Curtir (desfazer) · 1 pessoa

Camila Guerra Foi lindo!!!
19 de Outubro às 17:19 · Curtir (desfazer) · 1 pessoa

Moratto Paulo Rodrigues Pena eu não ter ido. Fiquei na duvida se matava aula de ZÉ REGINO ou se ia ao CCBB. Lamento pra mim. Sei que foi genial.
19 de Outubro às 19:51 · Curtir (desfazer) · 1 pessoa

Catarina Accioly Ahhh... louca pra ir, mas sem conseguir me desligar do trampo!!! Sorte Ouro Axé, amigo querido! Sinta-se beijado! Mande bjs para a equipe. ARREBENTEM!!!
19 de Outubro às 20:58 · Curtir (desfazer) · 2 pessoas
Sérgio Maggio Obrigado por tudo Carla Spegiorin Patrocínio;Âncora Comunicação/; Camila Costa
19 de Outubro às 22:11 · Curtir · 2 pessoas

Rogélia Heriberta Nós é que agradecemos por tudo e eu por me aturar... Bjjjj
19 de Outubro às 23:25 · Curtir (desfazer) · 1 pessoa

Silvia Paes Estou sem palavras pra dizer tudo que senti nesse evento de uma grandiosidade infinita! Agora só me resta agradecer por ter tido a oportunidade de atuar nesta linda homenagem a Boal. Beijos!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Teatro Subversão de palco e plateia


Foto Ronaldo Oliveira
Mariana Moreira
Acostumados a serem receptores da ação teatral, os espectadores do projeto Mitos do Teatro Brasileiro, que homenageou o diretor e dramaturgo Augusto Boal nesta terça-feira, viveram uma experiência diferente. Durante alguns instantes, foram deslocados para a posição de atores, ou espect-atores, para usar expressão cunhada pelo próprio homenageado. Antes dos depoimentos da noite, feitos por Amir Haddad, Aderbal Freire Filho e pela viúva do teatrólogo, Cecília Boal, os comandantes da parte cênica da homenagem, os atores J. Abreu e Sílvia Paes, apresentaram um impasse, baseado no Teatro do Oprimido, criado por Boal.
Diante do impasse, uma mulher que quer ensaiar um espetáculo mas é reprimida pelo marido, a plateia foi convidada a debater soluções possíveis, além de subir ao palco e encenar sua sugestão. O exercício rendeu cinco alternativas apresentadas pelo público.
Antes de relembrar o amigo, o diretor e professor de teatro Amir Haddad, pediu que as luzes do Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), fossem acesas. “Não combina com o Boal deixar a plateia mergulhada no escuro e o palco superavalorizado”, explicou.
Em seu tributo, Haddad ressaltou a grande contribuição dada pelo amigo ao teatro. “O teatro não depende do mistério. Essa desilusão faz parte da desmistificação. Todo mundo pode fazer teatro. Ele é uma atividade pública feita por particulares”, defendeu. Seu depoimento, de forte teor político, atribuiu a Boal um esforço para liberar o teatro de uma opressão ideológica imposta pela sociedade burguesa capitalista.
Após assistir à cena que evoca os tempos em que o homenageado dirigiu o show Opinião, Aderbal Freire-Filho fez questão de incluir Boal no panteão de mestres universais da cena. “O Teatro do Oprimido é, merecidamente, seu legado mais conhecido. Mas ele era um mestre e mestres não podem ser contidos em uma criação. O autor Boal eram muitos. O diretor, também”, exemplificou Freire-Filho, que citou a criação do artista-cidadão como uma das principais contribuições do diretor.
O desfecho ficou por conta da mulher do artista, Cecília Boal, que revelou sua preocupação com uma abordagem menos política e mais superficial do legado do marido. “Essa quebra dos limites entre o palco e a plateia é um convite à transgressão, mas precisa seguir regras. É importante que seja uma assembleia onde se pensa junto, e de onde se pode sair com uma possibilidade de ação concreta”, reforçou ela. “ Augusto Boal é como Raul Seixas: vai ficando cada vez melhor”, concluiu Amir Haddad.
Tributos -- O projeto, que revisita as trajetórias de grandes nomes das artes cênicas nacionais, já homenageou Dulcina de Moraes, Dercy Gonçalves, Procópio Ferreira, Nelson Rodrigues, Cacilda Becker, Chico Anysio, Maria Clara Machado, Plínio Marcos, Lélia Abramo e Paulo Autran. A temporada se encerra em 22 de novembro, com um tributo à atriz Dina Sfat.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Avé, Augusto Boal

Mitos do Teatro Brasileiro homenageia o mestre da dramaturgia Augusto Boal

Mariana Moreira

Publicação: 18/10/2011 08:15 Atualização:

Augusto Boal deixou 22 livros escritos, traduzidos para mais de 20 idiomas (Zuleika de Souza/CB/D.A Press )
Augusto Boal deixou 22 livros escritos, traduzidos para mais de 20 idiomas

“Existem lugares no mundo em que as pessoas conhecem ele e não conhecem Pelé.” A frase é do diretor e professor teatral Amir Haddad, sobre o amigo Augusto Boal, diretor, dramaturgo e ensaísta que influenciou profundamente a cultura brasileira e criou novos limites para o jogo dramático. O próprio Haddad já comprovou esse prestígio. Durante uma viagem à Alemanha, entrou em uma livraria e pediu obras sobre teatro. O vendedor, então, disse que mostraria a ele algo especial, e o levou a uma estante de livros escritos por Boal. O legado do criador do Teatro do Oprimido será foco de mais uma edição do projeto Mitos do Teatro Brasileiro, em cartaz hoje, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), a partir das 20h.

O método criado por Boal, hoje presente em mais de 77 países, nos cinco continentes, casava teatro com pedagogia, tendo a transformação social como alicerce. A ideia era usar a ação dramática para formar lideranças nas centros urbanos, subúrbios e comunidades rurais. “É o teatro no sentido mais arcaico do termo.

Todos os seres humanos são atores — porque atuam — e espectadores — porque observam. Somos todos espect-atores”, escreveu o próprio Boal. Utilizado por não atores, serviria como instrumento de reflexão política. Seu conjunto de exercícios e jogos cênicos resultou em um novo método de preparação de atores, que teve impacto mundial.

Cecília Boal: luta para preservar o acervo do marido no Brasil (Institutoaugustoboal.wordpress.com)
Cecília Boal: luta para preservar o acervo do marido no Brasil

Amir Haddad, por sinal, é um dos convidados a participar da noite, com formato de teatro-documentário, e dar um depoimento sobre o diretor. “Ele era uma voz atuante, um emblema de resistência, de possibilidade de construção de um outro mundo. Não esse mundo de corrupção, discriminação racial, segregação, saneamento étnico, violência e injustiça”, defende. Em 1992, Boal candidatou-se ao cargo de vereador, pelo Rio de Janeiro, e Haddad era confundido com ele nas ruas. Ao sair da cabine de voto, ouviu de um eleitor: “Votei em você”. “Eu tinha orgulho em ser confundido com alguém que abriu caminhos importantes e corajosos para a população brasileira. Caminhos que vão além do discurso ideológico, são atitudes humanistas”, afirma.

A atuação de Boal não se resume a elevar o teatro ao posto de ferramenta social e política. Antes do Teatro do Oprimido, que ganhou formatação nos anos 1970, durante o exílio que o levou a viver entre a Argentina e a França, ele já acumulava longa experiência nos palcos. Integrou o Teatro de Arena, uma das maiores companhias brasileiras, e dirigiu espetáculos históricos. Durante a ditadura militar, realizou o famoso show Opinião, com Zé Keti, João do Vale e Nara Leão, que depois seria substituída pela estreante Maria Bethânia. Deixou 22 livros escritos, traduzidos para mais de 20 idiomas. Em 2008, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, e no ano seguinte foi nomeado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) embaixador mundial do teatro.

Como Brecht
Quando Boal faleceu, vítima de uma leucemia, em 2009, o diretor Aderbal Freire-Filho declarou: “Ele é um dos deuses do arquipélago do teatro, um dos mitos da nossa religião”. Também convidado a falar sobre o amigo na homenagem, Freire-Filho defende que Boal, ao lado de mestres como Constantin Stanislavksi e Bertolt Brech, marcou o século 20. “O que esses mestres têm de maior é propor um avanço, fazer com que o teatro vá mais longe na relação com a sociedade”, defende. Outra contribuição marcante, aponta Freire-Filho, é a criação dos seminários de dramaturgia, que revelaram textos clássicos de Oduvaldo Vianna Filho e Gianfranceso Guarnieri.

Amir Haddad: saudades do colega e criador do Teatro do Oprimido (Jose Varella/CB/D.A Press )
Amir Haddad: saudades do colega e criador do Teatro do Oprimido

O tributo contará ainda com os atores J. Abreu, codiretor do evento, a atriz Sílvia Paes e atores da Cia. Trincheira de Teatro, em cenas inéditas criadas pelo dramaturgo Sérgio Maggio. A primeira delas evoca o Teatro Fórum, uma das bases do sistema desenvolvido por Boal.

Nele, a barreira entre plateia e palco é destruída e os espectadores dialogam livremente com os atores. Uma cena em que há conflito e opressão será apresentada, e o público poderá assumir o papel de protagonista, apresentando soluções possíveis. Na segunda encenação, será revivida uma história real, dos bastidores do show Opinião. Além de atriz do Teatro do Concreto, Sílvia é multiplicadora das técnicas de Boal no Centro-Oeste. “O Teatro do Oprimido não é utopia. Ele não transforma o mundo inteiro, mas transforma sua própria vida. Eu mudei, como mulher e cidadã”, afirma.

Mitos do Teatro Brasileiro — Augusto Boal

Hoje, às 20h, no Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Trecho 2, Lote 22 - 3108-7600). Participação de Aderbal Freire-Filho e Amir Haddad. Com J. Abreu e Sílvia Paes. Entrada franca, mediante retirada de senhas, distribuídas com meia hora de antecedência. Não recomendado para menores de 12 anos.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Boal no CCBB - 18/10

Teatro de Boal é lembrado terça no CCBB

16/10/2011

Augusto Boal_foto de divulgação

Projeto Mitos do Teatro tem encenação, conversa e depoimentos

“O Teatro do Oprimido é o teatro no sentido mais arcaico do termo. Todos os seres humanos são atores - porque atuam - e espectadores - porque observam. Somos todos espect-atores”. A sentença é do teatrólogo Augusto Boal (1931-2009), o criador do método do Teatro do Oprimido, também do Teatro Invisível, do Teatro Imagem e de movimentos fundamentais do teatro brasileiro que se renovou na segunda metade da década de 1950. A vida e a obra do carioca que se tornou referência mundial nos métodos teatrais são lembradas pela série Mitos do Teatro Brasileiro, nesta terça, às 20h, no CCBB.

O projeto dirigido por Sérgio Maggio e J.Abreu tem como destaque da homenagem as participações dos diretores Aderbal Freire-Filho e Amir Haddad, dois grandes conhecedores da trajetória de Boal e dois pensadores-realizadores também fundamentais na nossa história teatral.

Augusto Boal surgiu para o teatro, depois de pós-graduar-se em engenharia química e fazer um curso de teatro em Nova York, como a principal liderança do Teatro de Arena em 1960. Foi perseguido pelo regime militar, preso e exilado. No exterior, desenvolve as bases do Teatro do Oprimido, método que foi adotado mundo afora e o projetou como um dos grandes nomes do teatro do século 20.

O crítico Yam Michalski resumiu bem a abrangência da presença de Boal no teatro brasileiro: “Até o golpe de 1964, a atuação de Augusto Boal à frente do Teatro de Arena foi decisiva para forjar o perfil dos mais importantes passos que o teatro brasileiro deu na virada entre as décadas de 1950 e 1960. Uma privilegiada combinação entre profundos conhecimentos especializados e uma visão progressista da função social do teatro conferiu-lhe, nessa fase, uma destacada posição de liderança. Entre o golpe e a sua saída para o exílio, essa liderança transferiu-se para o campo da resistência contra o arbítrio, e foi exercida com coragem e determinação. No exílio, reciclando a sua ação para um terreno intermediário entre teatro e pedagogia, ele lançou teses e métodos que encontraram significativa receptividade pelo mundo afora, e fizeram dele o homem de teatro brasileiro mais conhecido e respeitado fora do seu país".
da redação

serviço
Mitos do Teatro Brasileiro – Augusto Boal
data:18 de outubro
hora: 20h
local: Teatro I do CCBB
entrada franca
classificação 12 anos
informações 3108 7600

Boal por ele mesmo


por Rose Spina e Walnice Nogueira Galvão*

Como você descobriu o teatro?

Quando eu era criança não havia telenovela, mas o correio trazia, todo fim de semana, fascículos de romances, O Conde de Montecristo, A Ré Misteriosa. Minha mãe comprava, lia e dava para a gente ler. No domingo, toda a família se reunia em casa para almoçar, um almoço “ajantarado”. Vinham 25, trinta pessoas. Irmãos e primos, nos juntávamos e dramatizávamos os fascículos. Minha estréia em teatro foi aos 9 anos. Mas minha estréia dirigindo foi em Nova York.

E como se deu a politização?

A politização foi fora do teatro. Meu pai era dono de uma padaria e desde os 11 anos eu o ajudava. Então, via uma população de trabalhadores do curtume carioca que freqüentavam a padaria, a maioria negros e todos pobres. A politização se deu pelo choque de classes. Minha família não era rica, meu pai tinha padaria, duas ou três casas na Penha, um bairro operário, mas havia uma diferença muito flagrante entre mim e os colegas que jogavam futebol comigo. Eles eram pobres, passavam por dificuldades. Na hora de jogar futebol, o time era coeso, “todos por um e um por todoss”. Depois, um ia dormir numa casa com o chão todo quebrado e eu ia para uma casa bonita e gostosa. Isso dava a um jovem com aquela idade um sentido de que alguma coisa estava errada. O senso de injustiça despertou.

Como você se encaminha para o teatro com essa idade?

Por volta dos 9 anos comecei a escrever peças sobre essas pessoas, sobre aquela gente. E fiquei amigo do Abdias Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro. Como eu trabalhava e minhas peças eram sobre os negros que eu conhecia, passei a entregá-las a ele. Uma vez ele quase encenou uma peça minha com Grande Otelo chamada Martim-Pescador, baseada na vida de pescadores.

E qual é sua formação?

Sou engenheiro químico. Fiz esse curso porque meu pai, imigrante português, queria que todos os filhos fossem doutores. E o teatro não dava doutorado naquela época. Como eu gostava muito da garota que namorava e ela ia fazer química, não tive dúvidas: faria a mesma coisa. Fiz o vestibular, só que eu passei e ela não. De repente, me vi num laboratório, a namorada foi para letras ou outra coisa e o namoro acabou.

Levei o curso até o fim. Como meu pai era um homem muito justo e meus irmãos ficaram mais tempo na universidade, sustentados por ele, ganhei o direito de passar um ano no lugar que quisesse. Escolhi Nova York porque gostava de um crítico, John Gassner, que
tinha sido professor de Arthur Miller, Tennessee Williams...

Como você o conhecia?
Havia lido um livro dele e resolvi lhe escrever. Ele estava fora naquela época, e disse que a partir do ano seguinte estaria na Universidade Columbia, para onde eu poderia ir. Estudei com ele dois anos, mas não via nada de político. Aprendia estrutura teatral, a chamada “carpintaria teatral”, como se diz no Brasil. Para fazer uma peça funcionar é preciso montar uma estrutura que é de carpintaria mesmo. Tinha a impressão de ler todos os livros jamais publicados. Começava a leitura às 7 horas da manhã e ia até às 18 horas. Nunca mais perdi o hábito de ler... Quando voltei, o Sábato Magaldi sugeriu que eu fosse para o Teatro de Arena. Era apenas para fazer uma peça, e acabei ficando lá quinze anos dirigindo teatro. Foi muito bom.

Como você descobriu o teatro político, que mudou várias vezes de nome em sua trajetória, mas sempre foi teatro de intervenção política?
A expressão “teatro político” eu rejeito porque, como toda arte, teatro é uma representação da realidade, não é realidade. Se é uma representação, tem de ter um ponto de vista. E, se apresentar um ponto de vista, é político. Mais político ainda é o teatro que diz não ser político. Por exemplo, os filmes norte-americanos.

A percepção do real se dá em três níveis ascendentes. Primeiro, o da informação. Você vê um tigre na frente, a luminosidade informa o nervo óptico, que transmite para o córtex. Se ficarmos nesse nível, somos informados e mais nada. Então, é preciso passar para outro nível, que é o do conhecimento, o interrelacionamento de todas as informações que recebemos. Mas isso os animais também têm, porque, se um animal vê um tigre, sai correndo como nós. É preciso chegar ao nível superior, que é o da consciência, dar um sentido a nossas ações.

Quando os filmes norte-americanos, voluntariamente, não chegam ao terceiro nível, é justamente para não dar consciência de nada a ninguém. Logo depois que as torres vieram abaixo, uma das primeiras ações políticas do presidente Bush foi chamar os donos da indústria cinematográfica e discutir quais seriam as normas dos filmes dali para a frente. Uma delas é que tudo tem de ser mostrado em branco e preto. Existe o bem e o mal. “O mal são os outros, nós somos o bem..” Não sou eu quem está dizendo isso. Isso foi colocado pelo Bush claramente.

Como você foi politizando seu teatro e passando pelas várias fases que conta em sua biografia,Hamlet e o Filho do Padeiro?
No Arena encontrei pessoas como Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri, Flávio Migliaccio, Vera Gertel, que tinham atividade político-partidária, coisa que eu só vim a ter com o PT. Na época havia o Partido Comunista, com o qual eu não concordava. Não havia partido que me atraísse. Mas se falava de política o tempo todo. Não que eu só fizesse peças que tinham a ver com a realidade brasileira. Ainda estamos no fim da década de 50, quando fechamos as portas do teatro para realizar o primeiro seminário brasileiro de dramaturgia e o laboratório de interpretação. A idéia era provar que o autor brasileiro podia existir, sim, que não eram só Guilherme Figueiredo, Juraci Camargo, de uma outra época. Todo mundo podia escrever. Aprendendo algumas coisas, a gente acaba escrevendo. Pode não ser nenhuma obra-prima, mas escreve. Tudo o que eu tinha aprendido com Gassner, e outras coisas, passei adiante. E rendeu.

Saíram da primeira leva Guarnieri, Vianinha, Juca de Oliveira, Lauro César Muniz, Renata Palotini, Edy Lima, Roberto Freire, entre outros. Depois, mais gente se integrou, como Benedito Rui Barbosa, que foi para a televisão, Chico de Assis... Também no laboratório de interpretação surgiram aqueles atores de uma forma mais inventada, e não copiada. E a iniciativa de passar pelo teatro dos clássicos foi uma idéia de nacionalizar os clássicos – se são universais, são brasileiros.

Antes do seminário, em 58, havíamos encenado a primeira grande peça, Eles Não Usam Black-Tie, do Guarnieri. Depois, veio Chapetuba Futebol Clube, de Vianinha. Em seguida, tivemos os clássicos, fase inaugurada com A Mandrágora, de Maquiavel, em 62. Foi engraçado quando fizemos O Tartufo, justamente em 64. Na platéia, muita gente que não conhecia Molière pensava que era o pseudônimo meu e do Guarnieri. “Agora que a polícia não deixa que vocês façam, vocês inventaram esse cara aí..” O Inspetor Geral, de Nicolai Gogol, foi lindo. A peça lotou três meses, voltava gente da porta. Aí o governador Adhemar de Barros, aquele do “rouba mas fazz”, sofreu impeachment. Quando ele caiu, a peça caiu também. Era tão ligada ao momento que deixou de ter o mesmo sucesso do período do Adhemar. E depois vieram os musicais. Em 1965 encenamos Arena Conta Zumbi.

E o Teatro Opinião?
O primeiro espetáculo foi em 64. Eu queria fazer O Processo, de Kafka, mas usando como atores os perseguidos: Enio Silveira, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido.

Queria, também, que Sérgio Buarque fizesse o Galileu, do Brecht, e ele chegou a dizer que ia pensar. Hoje, dona Maria Amélia me diz que ele estava propenso a aceitar. Acho que era o único brasileiro que podia fazer o Galileu. Não só porque ele havia entendido tudo, mas porque tinha um jeito de Galileu também.

Foi uma pena, mas esse pessoal todo não podia se envolver com isso. Seria bacana ver todas essas pessoas fazendo O Processo, alguém que está sendo acusado sem nenhuma prova, sem saber qual a acusação. Na impossibilidade, a melhor coisa foi escolher três cantores, compositores. Esse era o Opinião.

Como eu não podia convidar pessoas para contar a própria vida, então contávamos nós. Daí o Arena contando a história do Zumbi. Nós éramos classe média... Os atores se vestiam todos iguais, com camisa e calça jeans.

Mas já havia muito de Brecht aí?
Desde 50 se falava em Brecht. Falava-se mais de Stanislavski, que era a base de tudo. Deixa-me insatisfeito com Brecht o fato de continuar com o domínio do palco. E, para mim, não é assim que se liberta o espectador, que fica sentado, ouvindo. Para libertar o espectador é preciso fazer a transgressão simbólica da invasão do palco. É a mesma relação imperativa do teatro formal.

Você chega a essa conclusão mais adiante...

Tudo se dá meio junto. Na prática, podemos dizer que antes pensávamos que éramos artistas e que o público era público. Sabíamos mais porque éramos artistas. Depois fomos perdendo um a um os emblemas do artista. Perdemos a peça, porque era mutilada, perdemos os figurinos, porque não tínhamos dinheiro para comprar, não tinha mais subvenção. Quando perdemos toda a roupagem de artista, ficamos encarando a platéia, os espectadores. “Qual a diferença entre nós e eles?” Nenhuma. Os emblemas do artista não existiam mais. Então, somos todos artistas. Se eu sou artista e minha arte não depende do fato de ter um teatro, um cenário, quer dizer que ela está em mim.

Hoje trabalho com o MST, e a cada ano vem um grupo do movimento passar uma, duas semanas conosco. Gente do Pará, do Rio Grande do Sul, de São Paulo, de Minas. Nós usamos técnicas do Teatro do Oprimido, jogos. Faço peças com eles. Depois eles voltam para seus estados e reproduzem o que aprenderam para outros grupos e continuam aprendendo, multiplicam o trabalho. Este ano eles não vieram. Outro dia me disseram que estão muito ocupados com a multiplicação.

E de quantas pessoas é composto cada grupo?

Em média são vinte pessoas.

E você acompanha os resultados depois?

Não. Cheguei a ver uma apresentação no Fórum Social Mundial. Achei muito bacana porque era um grupo com o qual eu não tinha trabalhado. Nós havíamos trabalhado com os que trabalharam com eles. Havia o avô, o pai e o filho. Todos com a mesmíssima roupa, só variava o chapéu. Um usava chapéu de camponês, outro boné... Não falavam só de ocupação de terras, falavam de relação entre homem e mulher, de música, dos problemas que têm.

Isso me deu a maior alegria, porque é a multiplicação que interessa. Se hoje existe Teatro do Oprimido em setenta países é por causa da multiplicação. Não que eu vá a todos eles. Fui a uns trinta. Na África, por exemplo, há na maior parte dos países, e estive pouco lá.

Você vai muito à Escandinávia, não é mesmo?

Vou à Escandinávia todos os anos. Lá há um festival anual do Teatro do Oprimido. E existe um movimento sólido, contínuo, muito ligado à educação. Então, é permanente, durante as aulas. Nos Estados Unidos também há um festival anual, que é a pedagogia de Paulo Freire e o Teatro do Oprimido. A base é em Omaha, Nebraska, onde começou. Mas já foi em Nova York. No ano que vem será em Los Angeles e no outro em Vancouver, no Canadá, pois eles preparam com antecedência. É um movimento crescente. Em Nova York eles trabalham muito com sindicatos. O de Los Angeles é um centro também muito bom, mas trabalha mais com universidades.

Você falava da descoberta do teatro de intervenção...
Depois de algum tempo, tínhamos tantos problemas com a censura que não dava para fazer nada demasiado coerente, misturávamos coisas. Começou a ficar muito difícil.

Inclusive em outros lugares do Brasil?

Íamos muito para o Nordeste, mas depois de 64 acabou. Trabalhávamos com a Igreja e as ligas camponesas. Ficávamos hospedados na casa paro-quial, na base da dureza... Dureza porque jantar na casa paroquial é sopa, então tinha de almoçar bem.

Como foi a repressão?
Desde cortar uma peça até matar pessoas. A repressão era assim, eles matavam pessoas, prendiam, espancavam, cortavam peças... Uma peça que fiz chamada Arena Canta Bahia, com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Bethânia, todos os baianos, recebia todo dia a visita do censor, que todo dia cortava alguma coisa. Como Caetano tinha uma memória imensa, ele lembrava de outras músicas, que rapidamente aprendíamos para substituir as cortadas. Mas não deu para agüentar. A certa altura tiramos a peça de cartaz porque tinha perdido o sentido. Imagine: a peça tem uma coerência e tira-se um pedaço, arruma-se outra coisa que não tem nada a ver, e tira-se outro pedaço... Virou um show musical e perdeu o interesse.

Quando se inicia o Teatro do Oprimido?
Começou um ano antes de eu sair do Brasil. Foi em 70. Queríamos fazer uma escola dentro do Teatro de Arena. Convidei minha mulher, Cecília, que era atriz e estava chegando também da Argentina – ela é argentina –, e Heleni Guariba, minha melhor amiga naquela época, para fazer um curso. Era um grupo muito grande, do qual participou gente como Celso Frateschi, Denise del Vecchio, Dulce Muniz, entre outros. Quando o curso acabou, eles disseram que não queriam parar. Aí recuperei uma velha idéia que tinha tido com Vianinha, que nunca puséramos em prática, de fazer algo que chamaríamos de Teatro Jornal – utilizar os jornais do dia para fazer o espetáculo à noite.

Um trabalho absolutamente em cima da conjuntura...

Totalmente. Desenvolvemos doze técnicas de como transformar notícia de jornal em cena de teatro e batizamos de Teatro Jornal, 1ª edição. Trabalhávamos com os populares, mostrávamos como fazer, mas deixávamos que fizessem. Não tinha mais peça. Isso, mais uma vez, com a ajuda da Igreja.

Como a Igreja ajudava?
Cedendo o espaço, reunindo os fiéis. Em determinado momento tínhamos mais de cinqüenta grupos desse tipo, por toda São Paulo.

Você foi preso nessa época?
Fui preso em 1971, justamente quando Teatro Jornal, 1ª edição estava em cartaz e o projeto estava se espalhando pela cidade inteira.

Quanto tempo de prisão?
Fiquei preso quatro meses.

E as atividades de teatro continuaram?

Foram acabando. Não só porque fui embora, eu era o diretor artístico, mas também porque a repressão aumentou.

E como você conseguiu ser solto?
Só fui solto porque houve uma pressão internacional muito grande. Aliás, fui preso quando estava voltando de um festival em Buenos Aires e ia para um festival em Nancy, na França. E, como o elenco do teatro foi e eu não, Jack Lang, o presidente do festival, que depois veio a ser ministro da cultura, pediu a todo mundo que protestasse contra minha prisão. Até Sartre mandou um telegrama, que foi lido no tribunal. Fernando Henrique, inclusive, estava lá, não por mim, mas por outras pessoas que estavam sendo julgadas ao mesmo tempo. Foi ele quem leu o telegrama do Sartre. Entre as várias acusações que havia contra mim, uma era que eu tinha levado uns artigos para a revista Les Temps Modernes, de Sartre, contra a sangrenta ditadura. E no telegrama ele negava tudo isso. Depois fui para a Argentina, onde fiquei cinco anos.

Seu pessoal foi junto?
Foi, tanto o do Arena Conta Zumbi como o do Teatro Jornal.

Como foram esses anos fora do Brasil?
Mais ou menos. Os dois primeiros anos foram maravilhosos, porque viajei pela América Latina toda e comecei com o Teatro Invisível, em Buenos Aires.

Explique um pouco o Teatro Invisível.
O Teatro Invisível nasceu assim: uma lei argentina garantia que nenhum de seus cidadãos podia morrer de fome. Eles podiam entrar em qualquer restaurante e comer, só não tinham direito a sobremesa nem vinho. Então, preparamos uma peça, já que estávamos a favor da lei – tão raro –, para divulgá-la. No dia em que íamos encená-la na rua como peça normal, meus amigos brasileiros me alertaram: “Olha, não vá você, porque se eles forem presos são argentinos e saem logo, mas você corre o risco de ser mandado de volta para o Brasil”. E já tinham me avisado: “Aqui não prendemos o mesmo elemento duas vezes. Na segunda vez....”

O elenco insistiu que eu fosse. Alguém teve uma idéia. Como a peça se passava num restaurante, por que não irmos a um restaurante de verdade? Representaríamos sem dizer para ninguém que era teatro. Argumentei que tínhamos um problema, pois a peça tinha um gerente, um garçom... E alguém disse: “Então esses atores não precisam ir, pois o restaurante já tem gerente e garçom”. E foi maravilhoso, pois tanto o gerente como o garçom diziam frases que tínhamos na nossa peça, sabendo que todas eram previsíveis.

Havia o cara que comia, dizia que a comida era ótima, e depois mencionava a lei. Aí começava a discussão. Outro ator era o advogado e, quando alguém falava contra o rapaz, ele dizia: “Olha, eu sou advogado, e se chamar a polícia” – porque o dono queria chamar a polícia – “ela prenderá o senhor, porque esse rapaz está na lei, o senhor é que está contra a lei”. Outro falava sobre remédios. Era toda uma peça, não era umhappening. Havia uma peça, estava escrita, e o texto tinha sido decorado. A platéia entrava em cena, todo mundo participava. Quem estava comendo dava opinião. O restaurante inteiro ficava em polvorosa.

Quanto tempo durava cada encenação?

Essa primeira vez durou um tempo imenso. Em geral, durava pouco tempo, e depois os atores que chamamos de “aquecedoress” levavam a discussão mais adiante. Mas uma vez, em Estocolmo, ficamos tão contentes vendo que as pessoas desciam dos carros para conversar e participar da discussão que, o que estava previsto para 5 minutos, durou 15, 20. Era uma cena de Teatro Invisível – “meio invisível”, porque dava para perceber que era teatro – contra a poluição. A gente começava na calçada, tomando chá e comendo biscoitos, e havia uma discussão: “Por que você não vai fazer isso em casa?”, “Porque para casa eu vou de carro, e aí vai aumentar a poluição”, “Então o culpado é o carro, não somos nós, que somos transeuntes na calçada”. Aí eles colocavam as mesas na rua mesmo. E os carros paravam. Naquela época já havia câmeras filmando tudo na polícia, e a polícia chegou. Queria prender, mas não sabia quem era ator e quem não era. Então o sargento disse: “Prende todo mundo que estiver tocando no cenário”. O cenário era, por exemplo, a xícara de chá. E tinha uma velhinha que estava tomando chá. “É atriz, então vai para a polícia..” Havia um carro, e pelo rádio verificavam se a pessoa tinha antecedente criminal. Se não tinha, soltavam...

E o sujeito sai sem saber o que de fato aconteceu?
Sim. Nunca revelamos que é teatro, mas também nunca se obriga ninguém a participar, não existe humilhação. Não é esse negócio de pegadinha. Ninguém é humilhado. Na Alemanha, certa vez, fizemos contra o racismo. E a televisão estava filmando, para um programa sobre mim. Só que pedi que ficassem bem longe com as câmeras, para não serem percebidos. O pessoal ficou tão entusiasmado que os câmeras foram chegando bem pertinho, e ninguém prestou a menor atenção neles, continuava discutindo. Desde que se levante um problema que revela a violência que existe na sociedade, não cria-mos violência, revelamos a que existe. É tão fascinante que não interessa mais se é teatro, se não é teatro. Isso não entra mais em questão, e sim o problema, o racismo, a poluição...

E o que não foi tão bom assim no exílio?
Na Argentina, a situação também se fechava. Quando Perón retornou, já estava aquele desastre. Na chegada de Perón à Argentina 400 pessoas foram assassinadas. E daí para diante foi uma matança, uma carnificina...

De lá você foi para a Europa?
Meu advogado abriu um processo contra o Ministério das Relações Exteriores e conseguiu que me dessem o passaporte, que até então era negado. Estavam matando muitos estrangeiros na Argentina. Meus amigos temiam por mim, e eu sabia que corria risco, como os outros brasileiros que se encontravam exilados lá.

Saí da Argentina em 76, quando Videla assumiu. Fui para Portugal, onde fiquei dois anos.

De lá você foi para a França...
Na França foi uma maravilha. Fui para lá em 78, convidado para dar aula na Sorbonne. Com um bom salário, trabalhava duas vezes por semana. Nos outros dias, viajava e fazia Teatro do Oprimido em outros países. Fiquei um ano, e ao mesmo tempo meus livros foram lançados na França. O primeiro foi Teatro do Oprimido. Vendeu muito, e então começou a ter trabalho. Em 79, fundei o Centro do Teatro do Oprimido.

A designação “teatro do oprimido” é do final da década de 70?

É anterior. Em 73, participei no Peru de uma campanha de alfabetização em várias linguagens, entre as quais o teatro. Chamava-se Alfabetização Integral.

Eu queria chamar esse trabalho de Poética do Oprimido para guardar semelhança com a Pedagogia do Oprimido, do Paulo Freire. Mas um editor falou que não dava para pôr esse título porque não se sabia em que estante ia ser colocado, se em poesia, teatro, sociologia ou política... Então ele sugeriu Teatro do Oprimido. Achei meio estranho.

Você foi vereador pelo PT na cidade do Rio de Janeiro de 1993 a 1996. Qual sua avaliação dessa experiência legislativa?

Foi um dos melhores momentos da minha vida e também um dos piores. Dos melhores, por exemplo, ao aprovar a primeira lei brasileira de proteção às testemunhas. Levamos a proposta para o ministro José Gregori e hoje a lei federal é baseada nela. Outras leis são bastante pontuais. Por exemplo, ter creche em todas as escolas da prefeitura, atendimento geriátrico em todos os hospitais municipais. Mas a lei não é obedecida...

O que você chamou de Teatro Legislativo?

Teatro Legislativo é a utilização de todas as formas do Teatro do Oprimido com o objetivo não apenas de refletir sobre a realidade, mas de transformá-la realmente por intermédio da lei, escrevendo na lei o desejo da população.

Meus assistentes iam para as comunidades e formavam grupos. Chegamos a ter dezenove deles. Os grupos faziam o que quisessem, tratavam do que quisessem, e levavam a peça para as comunidades. Era o diálogo entre comunidades, uma levava sua peça para a outra. E havia festivais. Sempre tinha alguém que anotava as sugestões dadas. Essas sugestões às vezes eram votadas no próprio espetáculo. Tínhamos o que chamávamos de “célula metabolizadora”, alguns coringas do Centro do Teatro do Oprimido que estavam no mandato, mais alguns advogados, que juntavam tudo e extraíam uma lei. E depois o processo era normal, passava pela Comissão de Justiça.

Nunca fiz uma lei, ou melhor, aproximadamente cinqüenta vieram da população. Houve quem dissesse que inventei isso porque não era capaz de fazer leis. Baseado na experiência de Estocolmo, onde todo semáforo tem um som correspondente a cada cor, fiz um projeto de lei pensando nos cegos, que ouviriam o som indicativo para atravessar a rua. Então, um grupo de cegos conhecido soube e pediu uma audiência comigo. Eu estava feliz da vida, achando que estavam todos contentes, pois fizera algo para proteger a vida deles. Estavam furiosos. Alegaram que na Suécia só tem sueco e que os motoristas lá param, inclusive ao ver o sinal vermelho, e no Brasil não. Retirei a lei. Passei o mandato sem ter produzido nenhuma lei da minha cabeça, mas tendo aprovado treze.

E por que foi um dos piores momentos da sua vida?
Como eu era bastante combativo, houve uma campanha contra mim, pediram minha cassação, baseado no seguinte: fizemos um festival do Teatro do Oprimido, patrocinado pelo Banco do Brasil, com doze países. Na verdade tinha 25 países representados, por meio de videoteipe. Trouxe essa gente toda e eles faziam dois espetáculos apenas, eram três semanas. Então pedi que fizessem mais alguma coisa de graça, no morro. A secretária de Cultura na época, Helena Severo, deu 2.500 dólares para iluminação, alimentação etc. E a gente dava o espetáculo pronto. Isso se chama convenção, quando se faz um trabalho e não se é pago por isso, mas a prefeitura entra com infra-estrutura. Isso é perfeitamente legal. Fizeram uma campanha violenta contra mim, por um jornal apenas, O Dia, que durante semanas publicava diariamente na primeira página que isso era ilegal. Fizeram da minha vida um inferno que me rendeu dez processos, dos quais já ganhei oito.

O jornal tomou a iniciativa de processá-lo?
Não. A iniciativa dos processos surgiu na Câmara dos Vereadores. Um dos responsáveis era o vereador Jorge Pereira. Houve vários processos, da Receita Federal, de improbidade administrativa... Gastei mais dinheiro com advogados do que recebi durante quatro anos de mandato. Foi horrível, porque me apresentavam como tendo feito uma coisa ilegal. E mesmo o jornal dizia que eu era honesto, mas o que eu tinha feito era ilegal.

Quando era vereador, seus pronunciamentos em plenário eram bastante comentados, a Câmara parava para ouvi-lo...
Virou livro depois. Um dia descobri que estava rolando dinheiro para votar determinada coisa. E alguns vereadores diziam claramente que estavam ganhando. Fiquei tão furioso – e normalmente sou uma pessoa educada, não sou de agredir as pessoas – que subi na tribuna e disse: “Vossas excelências que votaram a favor do prefeito, vossas excelências são todos ladrões ou burross”. Quando saí, alguns colegas disseram que eu tinha exagerado. Duas horas depois, outro vereador foi falar contra mim: “O nobre vereador exagerou quando disse que nós somos ladrões ou somos burros. Ele sabe muito bem que aqui ninguém é burro”. O título do livro é Aqui Ninguém é Burro.

Como o que você faz é diferente do que a maioria entende por teatro, é como se você estivesse fora dos espaços comprometidos, das salas do teatro, da novela de televisão. Como você encara o que chamamos de teatro comercial?
É comercial, teatro normal.

Tem futuro?
Não tem nas condições atuais, porque a Lei Rouanet deu um golpe mortal no teatro. No Teatro de Arena, por exemplo, quando eu era diretor, Zé Celso era diretor do Oficina, Abujamra tinha o Decisão, cada um tinha um grupo. Trabalhávamos em grupo e recebíamos subvenções pelo ano inteiro. E era pelas peças que fazíamos, pelos espetáculos de música, teatro infantil, exposições de artes plásticas. Era todo um conjunto de atividades artísticas feito por aquele grupo.

Com essa lei, o direito de escolher o repertório passa aos donos de empresa, ou representantes das empresas que vão financiar aquele espetáculo. Ao mesmo tempo, vão financiar o espetáculo não porque seja necessariamente bom, mas porque traz retorno publicitário. Transformaram a cultura em publicidade. Quando, por exemplo, eu queria fazer A Traviatta, a pessoa que queria ser o produtor mandou o pedido para cinqüenta empresas. Todas disseram que o projeto era maravilhoso, mas... Uma que produzia massas abriu o jogo: disse que não ia patrocinar uma peça em que uma prostituta morre tuberculosa na noite de Carnaval. Isso não venderia macarrão! Só apóiam o que melhora a imagem da empresa. É natural. Se você tem um dinheiro que iria pagar o governo e não paga mais o governo porque faz cultura, que cultura vai fazer?

Qual sua expectativa quanto à política cultural do governo Lula?

Estou apreensivo e ao mesmo tempo esperançoso. A gente quer que dê certo. De todas as campanhas de que participei aqui no Rio, do Lula, da Benedita, sempre havia a cultura. Assisti a 90% das reuniões que fizeram sobre cultura. Um dia foi na minha casa. O Lula veio, tinha uma porção de gente. E ele pediu que eu anotasse as sugestões que estavam sendo dadas. Pouco depois alguém ao meu lado perguntou como eu já anotara doze se só tinham falado cinco. Respondi: “Não disseram, mas vão dizer logo”. Tudo o que o Lula falou sobre cultura durante as campanhas eu assino embaixo. Às vezes eu até ria, porque ele dizia coisas que eu já tinha escrito em meus livros, e acho que ele não leu meus livros. Quando ele foi eleito, eu esperava que isso já fosse posto em prática imediatamente. Até agora, nada foi posto em prática. Mas tenho esperanças. Não sou apressadinho, não quero comer cru, mas estou com fome.



*Rose Spina
é editora de Teoria e Debate

*Walnice Nogueira Galvão é integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate