Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

domingo, 29 de maio de 2011

Morre o mestre Abdias do Nascimento

Abdias do Nascimento deixa um legado histórico e incalculável à cultura

Sérgio Maggio

O homem Abdias do Nascimento tinha um orgulho dito em vida: o de nunca fraquejar diante do racismo, o de arrombar portas e bater no peito para denunciar a dor de ser discriminado pela cor da pele. O menino de infância adocicada pelo cheiro vindo do tacho da mãe cozinheira e pela suavidade dos acordes do violão tocado pelo pai operário gritou quando a violência racial lhe deu as primeiras rasteiras.

— Era tanta mágoa, tanto desapreço. Eram tantas palavras malditas ditas contra o negro, lamentava.

Na manhã de ontem, aos 97 anos, o ator, diretor, dramaturgo, artista plástico, poeta e militante Abdias do Nascimento morreu sem ver o Brasil como sonhou, com grandes líderes negros a chefiar o Estado, as grandes empresas nacionais e os veículos de comunicação. Despediu-se da vida, no entanto, consciente de que a conquista por maior respeito e visibilidade passa por sua trincheira de luta. É, sem dúvida, o maior símbolo da negritude no Brasil, sobretudo por associar as ações políticas à arte. Foi ele quem idealizou, fundou e dirigiu o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, atuando diretamente na modernização dos palcos nacionais ao colocar a problemática dos afrodescendentes no palco

— Criei o Teatro Negro Experimental não só com o objetivo do combate, mas para ampliar os horizontes da população afrodescendente, resgatando a história do negro, os valores culturais e, principalmente, oferecendo alternativas criativas para a construção de um futuro de melhor qualidade da população de origem africana no Brasil, dizia Abdias do Nascimento.

A coerência na carreira artística e política fez de Abdias do Nascimento um nome incontestável no Brasil e no exterior (Abdias Nascimento/Divulgação)
A coerência na carreira artística e política fez de Abdias do Nascimento um nome incontestável no Brasil e no exterior
O Teatro Negro Experimental surgiu em diálogo com Os Comediantes, companhia que montou Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943, colocando o Brasil par a par com as inovações das artes cênicas. Abdias do Nascimento foi a público convocar negros e negras para atuarem nos palcos. Vieram operários, dançarinos de gafieira, sambistas do morro, empregadas domésticas e passistas das escolas de samba. Juntos, ocuparam instalações da UNE, foram alfabetizados, politizados e receberam aulas de interpretação com o professor Ironildes Rodrigues. Estrearam com montagem própria em maio de 1945, no sofisticado Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com o espetáculo O imperador Jones, de Eugene O'Neill. Grandes intérpretes foram formados no TEN. Ruth de Souza, dama negra do teatro brasileiro, é uma delas. O TEN estimulou a dramaturgia própria como um norte estético.

— Tinha ido ao Peru com a Santa Hermandad Orquídea, grupo de poetas argentinos e brasileiros do qual fazia parte. Em Lima, assisti à peça O imperador Jones, estrelada por um ator branco, Hugo D'Evieri, que estava pintado de preto. Saí de lá refletindo sobre essa situação e quis criar um grupo no qual os atores negros pudessem chegar ao palco.

Já símbolo da resistência do negro no país, perseguido e preso pelo governo totalitário de Getúlio Vargas, Abdias do Nascimento recebeu apoio de intelectuais e artistas em sua empreitada histórica nos palcos. Trocou experiências estéticas com Augusto Boal, Nelson Rodrigues e comemorou dois anos de atividade com trecho do espetáculo Otelo, de William Shakespeare. Em cena, a dama Cacilda Becker contracenava com os atores negros. O que provocou um escândalo na elite branca que consumia teatro burguês. Em 1957, o TEN participou da montagem de Perdoa-me por me traíres com o próprio Nelson Rodrigues contracenando com Abdias do Nascimento, Léa Garcia e Sônia Oiticica.

Ações múltiplas
O impacto do TEN ultrapassou os palcos. Abdias organizava ações sociais, como a Beleza Negra e o Concurso de Artes Plásticas, com o tema Cristo negro. Estava por trás de uma série de convenções, congresso e semanas para discutir a situação do negro no país. Editou o jornal Quilombo. O TEN estimulou ainda a criação de companhias similares e seguiu em atividade até 1968, quando Abdias do Nascimento foi forçado a sair do país e viveu 13 anos no exílio. Foi justamente nesse período que ele trocou a atividade artística pela militância política direta. Beneficiado pela Anistia, investiu na carreira política, assumindo cargo de deputado federal e senador da República pelo PDT, sempre reivindicando um lugar para a cultura negra na sociedade.

A coerência na carreira artística e política, que começou na década de 1930, quando integrou a Frente Negra Brasileira, em São Paulo, fez de Abdias do Nascimento um nome incontestável no Brasil e no exterior. De alma delicada, gostava tanto de arte e orquídeas que não conseguia viver longe delas. O mestre será enterrado hoje, para quem não sabe, dia mundial dedicado à África, berço de todos.

— Abdias do Nascimento partiu para Orum, o grande mestre. Obrigado por tudo, diz o rapper Gog

terça-feira, 3 de maio de 2011

José Renato Pécora, um homem de teatro



Fundador do Teatro Arena, um dos mestres dos palcos brasileiro morreu logo depois de encenar a sessão de domingo de 12 homens e uma sentença

Sérgio Maggio*


Na virada de domingo para segunda, Maria Alice Vergueiro e Luciano Chirolli trocavam ideias sobre o teatro, a vida e a morte enquanto brindavam com champanhe o fim da temporada gloriosa de As três velhas, em Brasília. Ela, uma das operárias que ajudou a erguer o teatro contemporâneo brasileiro, dizia que todo grande intérprete gostaria de morrer em cena. Lembrou de Cacilda Becker, que saiu em coma de Esperando Godot, carregada com o figurino de Estragon e o nariz de palhaço da personagem. Sem ninguém saber, morria ali, naquele intervalo de tempo, um dos mestres do teatro brasileiro: José Renato Pécora ou simplesmente Zé Renato. O enfarto não o derrubou no palco. Esperou que ele terminasse mais um sessão da estupenda montagem 12 homens e uma sentença (no Teatro Imprensa, em São Paulo), na qual brilhantemente interpretava o Jurado nº 9, responsável pela primeira grande reviravolta da peça de Eduardo Tolentino.


— Na sessão deste domingo, ele trocou uma palavra do seu texto, que só o elenco percebeu. Em vez de dizer “o velho queria um pouco de atenção”, falou: “O velho queria um pouco mais de tempo.” Fugiu a palavra, ele se desculpou, sorrindo no camarim ao fim do espetáculo. Pois é, tanto ele como todos nós queríamos um pouco mais de tempo para o nosso encontro. Não fomos atendidos. Fica em nós a saudade, que dói demais. Mas fica também a certeza de que José Renato marcou definitivamente o teatro brasileiro — e, em particular, marcou a vida e o caminho de cada um de nós, escreveu o ator Oswaldo Mendes, que interpreta o Jurado nº4.


Zé Renato morreu aos 85 anos quando se preparava para seguir para o Rio de Janeiro. Saiu da sessão, foi jantar normalmente com o elenco e depois seguiu para o Terminal Tietê, onde pegaria o ônibus da meia-noite. Horas depois, uma produtora recebeu uma ligação da enfermeira do Pronto- Socorro de Santana, que localizou o telefone no celular do Zé Renato, comunicando a sua morte. Atores, diretor e técnicos correram para o hospital. O clima de consternação tomou conta de todos.


— Ele estava em um momento feliz. O sucesso de 12 homens e uma sentença é, especialmente, o sucesso dele que, por ter feito a sua trajetória no teatro como diretor, desde que criou o Arena, não tinha provado o reconhecimento das plateias, em especial dos muito jovens que assistem ao espetáculo, observa Oswaldo Mendes.


O clima nos bastidores era uma festa. Oswaldo conta que Zé Renato experimentava uma alegria juvenil. Ele ria, afiava o repertório de piadas, puxava coro de músicas das antigas em exercício para apurar a memória:


— Uma noite, de tanto rir das brincadeira dos atores Riba Carlovich e Norival Rizzo e da Ieda, nossa fiel camareira, ele desabafou com um sorriso largo: “Vocês ainda vão me provocar um enfarte de tanto rir.”


Se desse tempo, José Renato estaria em Brasília, no dia 18 de agosto, para saudar a memória de Lélia Abramo ao lado do diretor João das Neves, no projeto Mitos do teatro brasileiro, do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). O encontro reuniria, no palco, os fundadores do Arena e do Opinião a falar da grande dama do teatro político.


—Neste ano, minha vida está completamente tomada com essa maravilha que é 12 homens e uma sentença. Mas, para falar de Lélia Abramo, eu abro qualquer brecha em minha agenda. E ainda estar ao lado de João das Neves. Isso vai ser um dia histórico, vibrou o ator e diretor ao telefone, completamente entusiasmo com a montagem de Eduardo Tolentino.

Mentor do Arena
A montagem de Tolentino, unanimidade de público e crítica, trouxe o mestre dos bastidores ao palco. O ofício de ator não era exercido há cinco décadas e meia. Zé Renato era um dos diretores brasileiros que estão no panteão dos mestres. Ajudou a montar, a conceber o Teatro de Arena. É diretor de Eles não usam black-tie, montagem do antológico texto de Gianfrancesco Guarnieri, historicamente responsável por nacionalizar o teatro brasileiro, levando para os palcos temas sociais urgentes de um Brasil à beira do golpe militar. Ele segue nesse rastro e ergue textos como Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, em 1962, e O pagador de promessas, de Dias Gomes, em 1963. É também um dos responsáveis por aprofundar o teatro bretchiano no país com encenações antológicas como Os fuzis da Sra. Carrar, em 1962, e A ópera dos três vinténs, que inaugura o Teatro Ruth Escobar, em 1964.

Fundado em 1953, o Teatro Arena é o legado crucial de José Renato, que mudou os rumos do teatro brasileiro. A ideia de pôr a plateia circundando toda a cena surge na troca de ideias do professor Décio de Almeida Prado, da Escola de Arte Dramática (EAD), com os alunos Geraldo Mateus e José Renato. Zé Renato testa o formato no país apresentado em clubes e fábricas, com fortes aspirações políticas para a nacionalização do teatro nacional, inspirado no Théâtre National Populaire (TNP), do mito Jean Villar, onde estagiou em 1959. A estreia ocorre nos salões do Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM/SP. A peça inaugural foi Esta noite é nossa, de Stafford Dickens, com José Renato, Geraldo Mateus, Henrique Becker, Sergio Britto, Renata Blaunstein e Monah Delacy. Nesse dia, José Renato fez história.



*Colaborou Mariana Moreira


Repercussão:
“Ele foi uma das pessoas mais importantes clara e seguramente; Um camarada que criou todo o Teatro de Arena, revelou Guarnieri e influenciou toda uma geração: eu, Augusto Boal, Amir Haddad, Zé Celso Martinez Correa. Nossa geração deve ficar de joelhos para ele”, Antonio Abujamra, ator e diretor “Zé era um amigão. Me dirigiu em A ópera de três vinténs, em 1964, e ficamos muito simpáticos um ao outro”,

Maria Alice Vergueiro, atriz e diretora
“Zé foi um dos propulsores de uma mudança radical no teatro brasileiro. Sempre teve uma trajetória muito coerente e rigorosa, no sentido de fazer espetáculos artisticamente muito fortes. Também nunca se desligou de movimentos sociais Sempre foi uma pessoa fundamental para o teatro brasileiro em todos os sentidos: como diretor, incentivador de movimentos populares e por acompanhar as mudanças estéticas. Foi um ator fantástico, fazia trabalhos excepcionais e trabalhou até o último instante. O teatro fica empobrecido nesse instante, mas o legado dele fica”

João das Neves, diretor


“O teatro brasileiro está de luto. José Renato Pécora, um dos nomes mais importantes do nosso teatro nos deixou. Um lutador incansável”


Odilon Wagner, ator
“O teatro perde o idealizador do Teatro de Arena, o palco é circundado pela plateia, mudando totalmente a forma de representar”
José de Abreu, ator
“Ele é um exemplo pra todo mundo. Estava junto com a gente em todos os momentos. Apesar da idade, participava ativamente de tudo. Um homem da arte e da política, que vai deixar um exemplo para as próximas gerações” Ney Piacentini, ator e presidente da Cooperativa Paulista de Teatro