Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Artista sem rótulos

O dramaturgo Sérgio Maggio com Chico no palco do CCBB

Consagrado pela tevê, Chico Anysio se tornou uma referência em diversas linguagens. No teatro, foi pioneiro nos shows de humor

SÉRGIO MAGGIO

No especial de Chico Anysio que foi ao ar em 2 de janeiro de 2011, o olhar debilitado do homem atravessa a máscara das dezenas de personagens que surgiam diante da tevê. A voz, uma das ferramentas mais potentes desse ator genial, revelava o declínio físico. Mesmo assim, como um herói diante de sua saga, o intérprete atravessou, com dignidade, o último programa no veículo que o consagrou como um mito. Dos impagáveis tipos, há pelo menos um que cabe no gosto de cada brasileiro. Assim como é difícil eleger um entre tantos amores, é raro encontrar alguém que não enxergue em Chico uma unanimidade.
— Normalmente, os personagens saem de pessoas que conheço, avisava o humorista.
A identificação era tanta que as reivindicações, por vezes, vinham em coletividade. Era o caso do malemolente Painho, o guru das estrelas.
— Todos os pais de santo da Bahia acham que eles me deram inspiração para criá-lo, brincava Chico.
O pai dos 209 tipos guardava com gosto o amor pelo Professor Raimundo. Por vários motivos: a) Foi o personagem que veio da era do rádio, revelando uma geração de humoristas de primeira linha. O genial Mussum começou por lá, Tom Cavalcante também; b) A versão televisiva dos anos 1990 permitiu que Chico Anysio trouxesse de volta ao batente gente da estirpe de Grande Othelo, Rogério Cardoso, Nádia Maria, Brandão Filho, Costinha e Walter D’Ávila; c) O personagem era uma “escada” para os atores-alunos brilharem; d) O Professor Raimundo era uma crítica social ao sistema educacional brasileiro e uma defesa explícita à valorização do profissional mais importante de uma nação.
— Ele é o mais respeitado de todos os 209 personagens que criei, afirmava.
“E o salário, ó” correu o Brasil como tantas outras centenas de bordões. Por três décadas (1970 a 1990), Chico Anysio foi líder absoluto de audiência. Gerações inteiras cresceram sob a gozação de criaturas incontroláveis como o mulherengo Nazareno, o contador de causos Pantaleão, o ranzinza Popó, o “ex-gay” Haroldo e o deputado corrupto Justo Veríssimo.
Consagrado na tevê, Chico Anysio nunca coube num rótulo. Muitos analistas de sua obra diziam que se ele tivesse nascido nos Estados Unidos ou na Europa, seria tratado como um sumidade. Chico ria dessa bobagem. Sempre buscou a humildade como amparo para a gangorra de altos e baixos de um artista brasileiro. Fez história singular no teatro. Foi, ao lado de José Vasconcellos e Dercy Gonçalves, pioneiro dos shows de humor, hoje a febre conhecida como stand-up comedy. Até a passagem por Brasília em outubro, o filho André Lucas tinha contabilizado 11.358 apresentações em teatros de Norte a Sul do país, além de passagens pelo exterior. Alguns intérpretes consagrados, como Marília Pêra, admitem ter feito escola de humor vendo Chico Anysio atuar de cara limpa e gestos econômicos no palco.
— O teatro permite que eu seja eu mesmo todo dia porque a plateia muda. A televisão é o contrário. Permite que eu mude porque a plateia é a mesma todo dia, analisava.
Apaixonado por casamentos (“quando estou com alguém, sou extremamente fiel”), por futebol (adorava ser comentarista — foi flamenguista e depois vascaíno), por música (ele compôs alguns clássicos como Rio antigo), por escrita (foi um cronista e romancista elogiado), por marinas (tema que o consagrou como pintor) e por filhos (teve oito, com orgulho), Chico Anysio amava estar vivo. Trabalhar, para ele, estava no campo dos prazeres. Por isso dizia fazer tudo com tanto gosto e perfeição.
— Levo muito a sério o meu trabalho e é por isso que estou há tanto tempo aí. Faço meus textos pensando nas classes B, C, D e E. Se a classe E entende, todos entendem. Não faço para a classe A porque eles sempre estão em Angra dos Reis (RJ) nem pra B, porque eles sempre estão no Antiquarius (restaurante carioca).
Era tão crítico de si, que um dia pensou em ser deputado. Mas desistiu em bom tempo. Ria dessa maluquice. Um dia ouviu a pergunta:
— E se o senhor fosse eleito hoje presidente da República, qual seria sua primeira decisão?
Sem pestanejar, tirou da garganta:
— Renunciar. (risos)


PONTO A PONTO

Pílulas de humor *


Mulheres
Todas eram no tempo em que eram. Vou lhe dizer: eu fui dispensado muito mais vezes do que dispensei. Noventa e cinco por cento me dispensaram, cinco por cento, dispensei. Faço muitos shows, sempre fiz, e elas achavam ruim eu ter de sair para fazer os shows… Não se ama igual duas vezes, quanto mais nove vezes (risos).

Filhos
Os meus filhos são apaixonados por mim, não pelas mães. Isso porque, quando chegava das viagens, eu ficava da idade deles. Nunca bati num filho ou numa filha. Acho que nem castiguei, tipo: fica sem cinema domingo. Parto do princípio de que se uma criança erra não é por querer, é por não saber.

Maranguape
Tenho saudade do tempo em que era menino em Maranguape (CE), tinha 8 anos de idade e fazia o que queria, pois, na época, eu era filho de rico (o pai era dono de uma frota de ônibus e quebrou).

Humorísticos
Se permite, vou perder um pouco da modéstia. Se meu programa sair do ar, quem perde é o público e não eu. A juventude não vê a televisão, vê programas. Quem faz humor atualmente na tevê é A praça é nossa e Zorra total, ninguém mais.

Os Melhores do Mundo
Sou suspeito (risos), sou padrinho deles. Gosto deles todos. Eles viveram dois momentos na vida. Um ruim, quando os teatros eram vazios, e depois o momento do grande sucesso, quando estourou o quadro Joseph Klimber. Aí eles passaram a ser uma coqueluche nacional.

Humor
Há dois tipos de humor: o engraçado e o sem graça. Quando o humorismo não é entendido, as pessoas o colocam na gaveta dos sem graça. Foi o que aconteceu com o pessoal dos Melhores do Mundo no início, mas quando a plateia começou a entender, virou um grande sucesso.

Vira-casaca
Em primeiro lugar, não é proibido mudar de time (Chico foi torcedor do Palmeiras, do América, do Flamengo e agora é vascaíno). Em segundo lugar, se um cara muda de fé, ele não é um vira-cruz; se ele troca de mulher, não é vira-colchão; se ele muda de rua, não é vira-placa; se ele muda de partido, não é vira-voto. Por que mudar de time é vira-casaca?

Rio antigo
Era maravilhoso. A gente saía do cinema, à meia-noite, e ia para a casa de Álvaro Moreira (poeta e escritor) em Copacabana. Carlos Lacerda morava na casa dele. A gente ficava até as três, quatro horas da manhã conversando, tomando uísque, comendo tapioca, canjica… Sandro Moreira, João Saldanha, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli… muita gente aparecia por lá. A porta da casa estava sempre aberta, naquele tempo não tinha assalto.

Bossa nova
O problema da bossa nova é que o Brasil é um país apressado demais. A França até hoje procura sua identidade musical; a Alemanha até hoje procura a sua música, e não achou; Portugal achou o fado, os americano acharam o jazz, e o Brasil achou vários (samba, baião, bossa nova, etc.). No Japão, a bossa nova foi adotada por eles. Aqui, ninguém quer mais ouvi-la.

Compositor
Compus umas 400. Tenho gravações cantadas por Maysa, Silvio Caldas, Orlando Silva, Alcione…

* Entrevista concedida ao Correio Braziliense em 20 de outubro de 2010 a Irlam Rocha Lima, José Carlos Vieira e Sérgio Maggio.

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