Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Lady Shakespeare


Sérgio Maggio

Maior referência na crítica teatral no país e sumidade na dramaturgia do autor inglês, Barbara Heliodora recebe o Correio em casa e suspira quando fala de teatro



SÉRGIO MAGGIO


Rio de Janeiro — Do entorno do casarão do século 19, uma garça, estática como se fosse um enfeite de louça fincado num jardim, quebra a imobilidade e voa ganhando o céu carioca. Pousa sobre o sobrado que testemunhou a Corte virar metrópole. Numa das laterais da edificação, um filete do que sobrou de um rio mítico, onde índios Tubinambás banhavam-se acreditando que aquela água tinha o dom de seduzir, corta o lugar. Há uma aura de relíquia guardada naquele pedaço de cidade. Dentro da edificação histórica, uma mulher compõe a trajetória do teatro mundial. No escritório recoberto de 2.500 livros, as mãos tocam no teclado do computador como se fosse um piano. O texto que escorre pelo monitor ecoa como uma partitura que recria a epopeia do homem em se expressar por meio da arte de representação. A narração já aportou no século 20, daqui a pouco a escritora vai pôr o ponto final. Antes, interrompe pacientemente a criação, para falar sobre paixões.
— Ah, o teatro, suspira Barbara Heliodora, apontando as estantes que somem de nossas vistas diante do imenso pé direito do casario.
É preciso dobrar o pescoço para trás para acompanhar a quase infinitude de livros. Três módulos da estante só dedicados a William Shakespeare, autor cujas palavras a acalentaram desde quando era uma jovem estudante de filosofia nos Estados Unidos. Pelo bardo, a garota de 20 anos comportava-se como se fosse uma Julieta, perdidamente apaixonada e disposta a tudo para perder-se em seus braços. Pelo maior dramaturgo de todos os tempos, a mulher se entregou intimamente à arte teatral com a mesma disposição de Hamlet para honrar a sinistra morte do pai.
— Sempre espero encontrar um bom Shakespeare montado no Brasil, como Romeu e Julieta, do Grupo Galpão. Ah, como essa montagem é comovente e maravilhosa, preservando o espírito da peça… É apaixonante. Da última vez que eles vieram ao Rio, num Teatro Carlos Gomes apinhado de gente, no fim, não sei quem chorava mais: se eram os atores que se despediam da temporada ou os espectadores caídos em prantos.
A mais importante crítica de teatro do país e, na mesma proporção, a autoridade maior em William Shakespeare, Barbara Heliodora, se transporta para aquela sensação única, vivida e preservada como um relicário. Às vésperas dos 89 anos (completados em 29 de agosto), 45 deles dedicados ao ato de escrever resenhas jornalísticas sobre milhares de espetáculos (ele calcula ter visto entre 2.500 e 3.000 obras), ela está longe de ser uma analista racional, que despreza as impressões após concluir o ofício de elencar os erros e os acertos numa montagem teatral. Muito embora há quem tenha medo ou venere Barbara Heliodora.
— Não sou um mito e acho isso horrível. No início, fiquei assustada. Algumas pessoas criaram essa imagem. Nem sei por que inventaram essas coisas. Acho que cada um elege o crítico que melhor conversa com o seu gosto. Acredito em duas verdades: o bom crítico precisa ser o mais isento possível e é impossível um crítico ser totalmente isento. Trago ao espetáculo toda a minha formação e, claro, essa visão vai pesar quando escrevo. Por isso, é bom ter vários críticos atuando numa mesma cidade.
Triturando o próprio mito, Barbara Heliodora se posiciona como uma espectadora atenta. Lógico que com conhecimento especializado, mas acima de tudo uma espectadora, que jamais quis ser maior que o espetáculo. Sabe o quão é difícil transformar o texto de papel na peça que vive e respira junto do público. É uma pessoa que tem por função mediar as impressões da montagem tanto com os artistas quanto com a plateia. O duplo objetivo lhe parece na medida certa. Tudo que vem a mais é encarado com um certo exagero.
— Não estou escrevendo para o futuro. A minha crítica é para o aqui e agora.
Nas coxias dos teatros cariocas, grupos fluminenses e visitantes se ouriçam quando alguém da produção chega e avisa que Barbara Heliodora já está sentadinha na poltrona. O natural frio na barriga já virou devaneios. Teve um diretor que perdeu as estribeiras e tentou impedi-la de assistir à peça; outro, mais ressentido, desejou que a morte lhe visitasse com brevidade. São histórias desagradáveis, mas que a mulher de santo forte tira de letra.
— Sei que os elogiados me adoram (ri). Uns dois ou três diretores já me disseram que, quando a crítica é negativa, a frequência da peça não chega a cair, mas, quando é positiva, levanta a temporada.
Firme e honesta em suas posições estéticas, Barbara Heliodora é, decerto, dona de uma credibilidade capaz tanto de alçar nomes desconhecidos no mercado, quanto de ressuscitar carreiras em declínios. Do alto de sua maturidade, orgulha-se de nunca ter perseguido esse ou aquele artista. Para ela, que atualmente escreve semanalmente em O Globo, o objeto de todo o seu apreço é o espetáculo em sua magnitude. Se a montagem estiver condizente com o crivo dela, não há por que economizar nos elogios.


Dama histórica



Totalmente a favor do teatro, Barbara Heliodora é testemunha da evolução das artes cênicas no Brasil, sobretudo nos anos 1950 e 1960, quando viu o país abraçar a modernidade com dramaturgias que refletiam os problemas nacionais e montagens esteticamente ousadas. Nesse contexto, ajudou a fundar o Círculo Independente de Críticos Teatrais, ao lado de nomes como Paulo Francis e Sábato Magaldi. A instituição postulou um outro formato para as resenhas jornalísticas, agora mais objetivas e que clamavam por um teatro renovado.
— Antes, era algo assim: “Fulana ficou ótima com o figurino cor de rosa”. Fizemos também um intenso trabalho de formação de plateia, com sucessivos cursos de história do teatro e conferências.
Antes, quando ia ao espetáculo, ela fazia as devidas anotações. Faz tempo que erradicou esse procedimento. Agora, observa tudo com a mente funcionando a mil. Há uma minúscula parte do seu cérebro que rabisca tudo para ela, enquanto os olhos se entregam desde o primeiro instante da narrativa. Revela que os 15 minutos iniciais são cruciais em sua apreciação. Se está perdida, já era. É sinal de que a peça não se comunicou. Essas impressões são levadas ao computador e arrumadas em partes: uma apresentação da peça, uma análise do texto, da encenação (figurino, cenário, luz, trilha), a condução do diretor, a performance dos atores e um desfecho de arremate. Tudo agrupado naquelas poucas dezenas de linhas — limitante da crítica jornalística. Os estudiosos que se debruçam sobre o trabalho dela, dizem que é pura semiótica (ciência que estuda os signos). Barbara ri dessa bobagem.
— Se sou semiótica, foi por mera coincidência. Nunca estudei uma linha sobre isso.
Tudo que aprendeu foi se debruçando sobre textos e vendo teatro. Quando voltou dos Estados Unidos, fez uma vivência em O Tablado, da amiga Maria Clara Machado, para entender como se faz o milagre teatral, capaz de suscitar toda sorte de sentimentos, que para a crítica Barbara Heliodora, devem ser ditos com extrema honestidade e sem meias palavras. Gostem ou não.

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