Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O esteta do silêncio

 Foto// Folha S. Paulo

“Pra mim, quem mais choca é o silêncio, sabe. Quando você está lá no palco e tem um silêncio, você pode criar até um pouco de pânico”


Esteta do silêncio

Com Foi Carmem, Antunes Filho mata os estereótipos do Brasil ensolarado e aprofunda elementos do teatro oriental

CAROLINE MARIA

O espetáculo Foi Carmen (2005) é fruto de uma homenagem ao centenário do dançarino e coreógrafo japonês Kazuo Ohno (1906-2010), considerado um mito do teatro butô. As referências explícitas à atriz e cantora luso-brasileira Carmen Miranda (1909-55) aparecem combinadas a elementos da dança oriental, como o silêncio, a pausa e o corpo retorcido.

Mas nem tudo no Brasil de Antunes são bananas, sambas e colares abaianados. Ele mata os estereótipos em cena e carrega nos tons de uma personagem obscura, de brilho fosco, quebrando as molduras às quais Carmen (solar e importada) teve sua imagem aprisionada. Como argumenta o diretor, sua Carmen foi, ela está morta.
Com direção hermética, de marcações precisas e imagens contundentes, Antunes Filho apresenta uma Carmen subvertida e invertida — como uma espécie de curupira brasileiro — acompanhada também pela figura típica do malandro do Rio de Janeiro.


Em Foi Carmen, você une dois homenageados: a cantora Carmen Miranda e o dançarino japonês Kazuo Ohno. Como você chegou nessa ideia?
Fui convidado a fazer um espetáculo para o centésimo aniversário do Kazuo Ohno. Então eu falei: vou pensar numa coisa que tenha a ver com o próprio Kazuo Ohno. Comecei a improvisar e pensei… o Kazuo um dia se impressionou com uma bailarina argentina (Antonia Mercé y Luque) e então fez o máximo espetáculo dele, o Admirando La Argentina (1977). Ele com o butô dele foi bolando alguma coisa com essa bailarina. Então eu falei: vou fazer a mesma coisa, algo paralelo. Vou pegar a Carmen Miranda e, em cima dela, vou tentar colocar o butô do Kazuo Ohno. Foi daí que nós começamos a fazer improvisações. O espetáculo foi todo pensado para fazer com os atores do CPT (Centro de Pesquisa Teatral, em São Paulo, dirigido por Antunes). Deu nisso. Uma homenagem ao Kazuo Ohno baseado na Carmen Miranda.


Carmen Miranda tornou-se uma artista grandiosa também porque rompeu paradigmas com sua arte. No caso do seu teatro, o que ainda vem para chocar?
Pra mim, quem mais choca é o silêncio, sabe. O silêncio cria uma pausa dinâmica. Quando você está lá no palco e tem um silêncio, você pode criar até um pouco de pânico. Você pode, a partir disso, fazer brotar mil coisas imaginárias em cada espectador. Esse era o processo do Kazuo Ohno. Ele usava muito o silêncio, o stop, a parada. Isso criava uma sensação que você não sabia o que viria por meio do teu inconsciente e do teu subconsciente. Isso é explorado muito no espetáculo… O silêncio, a pausa, o stop. Como uma forma de brotar coisas no inconsciente, algo muito próprio do Kazuo Ohno, que fazia o ato da dança dele em cima da pausa e do silêncio. E aí ele projetava coisas incríveis no seu imaginário. Isso tentei adotar no espetáculo por meio da figura da Carmen Miranda. É um espetáculo estranho. Eu gosto, é diferente de tudo que eu fiz. As pessoas veem e perguntam “Antunes fez isso?” (risos). A peça não tem nada a ver, mas tem a ver. Talvez seja a que tenha mais a ver. Não sei.


Sua Carmen aparece mórbida, sempre de costas, coberta. Você pensou em fazer um contraponto com os símbolos solares que são exportados sobre a cultura do Brasil?
Pensei somente em Kazuo Ohno, que na época estava com 99 anos, e na Carmen Miranda, que já não é mais, ela foi. Ela é vista de costas por quê? Porque você está vendo as costas dela, o passado. É a peça indo atrás das costas dela, atrás do rastro da vida.


O festival ergueu a bandeira da América Latina nesta 13ª edição. Você acredita que o teatro brasileiro dialoga com essa latinidade ou ainda está voltado para o teatro americano e europeu?
A América Latina é uma tendência muito forte hoje no Brasil. Pode existir esse teatro americano nas grandes cidades, nas capitais como São Paulo e Rio, mas no resto do Brasil acho que está florescendo um teatro local, que tem suas raízes na própria terra. O que é fundamental. A terra, a brasilidade... inclusive, o Sebastião Milaré (crítico e teórico teatral) começou a catalogar isso. Tem um trabalho enorme a esse respeito e ele me disse que é incrível o que se cria nesse Brasil, em todos os recantos desse Brasil. Há esse teatro mais cosmopolita, mas também há algum teatro que foge disso. O resto do Brasil está muito mais preocupado com o Brasil do que nós, os cosmopolitas.


Então onde estão as raízes do seu teatro?
O que me preocupa é a raiz do homem. O que me preocupa é isso. O homem, a sua história, o seu futuro, o seu devir. Esse é o teatro que me preocupa, sempre. Eu vou fazer um espetáculo agora que é sobre o Nossa cidade, do Thornton Wilder, e estou fazendo uma adaptação dramatúrgica completa. Eu quero falar não somente do Nossa cidade, mas fazer um diálogo com o Thornton Wilder, então eu faço uma desconstrução. Eu quero falar do homem total, do homem universal, discutir esse homem. Então eu discuto as posições dos Estados Unidos, as nossas, o que nós achamos… mas não de maneira boba, idiota ou panfletária. De maneira humana. Humana, sabe? Humana do homem. O homem no humano.

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