Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

domingo, 19 de maio de 2013

Criador de gente

Dias Gomes e a revolução das telenovelas // Crédito Arquivo Rede Glo


Nas novelas, Dias Gomes conquistou o país com tipos brasileiros. Comunista desde a juventude, autor foi perseguido trama a trama

SÉRGIO MAGGIO

Dias Gomes sonhava em viver de teatro. Mas a ditadura militar o acossou. A censura perseguia cada linha do texto. Por conta de suas ligações com o Partido Comunista, respondia a inúmeros inquéritos. A situação financeira era delicada. Quem sustentava a casa era a mulher, Janete Clair, que escrevia novelas na TV Globo com relativo sucesso, sucedendo a era de folhetins importados, comandados pela cubana Gloria Magadan. Não havia saída. O caminho era mesmo escrever novelas e enfrentar o patrulhamento ideológico e feroz da esquerda. Afinal, a televisão era tida como um meio alienante e aliado ao sistema.
— Arrebanhei minhas personagens, meu pequeno universo, e, como quem muda de casa, mas conserva a mobília, lancei-me a aventura, contava Dias.
Com a utopia de um teatro popular como lastro, Dias Gomes foi alterando as regras do jogo na tevê brasileira. A revolução da teledramaturgia que ocorrerá nos anos 1970 está diretamente ligada ao seu repertório. O bicheiro Tucão, de Bandeira 2, o prefeito Odorico Paraguaçu, de O bem-amado, o homem de asas João Gibão, de Saramandaia. Eles saíram todos do imaginário popular, que já havia feito uma transformação no palco nacional. Agora, provocava uma identificação imediata com o telespectador, que se agarrava a telinha, chegando a dar 100% de audiência.
As novelas de Dias Gomes não faziam o jogo político do conformismo. Volta e meia, ele era intimado a depor, sobretudo, por conta da fama de comunista. A proibição da primeira versão de Roque Santeiro, programada para 1975, tem a ver com esse passado. Sem saber que o telefone estava grampeado, Dias Gomes revelou, ironicamente, que a novela era a adaptação de O berço do herói, peça odiada pelos militares e que, em formato novelístico, passaria despercebida, já que os censores eram seres afamados pela inteligência restrita. Resultado: a novela foi proibida no dia da estreia, com a TV Globo enfrentando a ditadura ao convocar o apresentador Cid Moreira para ler editorial ao vivo ao fim do Jornal Nacional. Roque Santeiro voltaria em 1986 para se tornar um dos fenômenos da tevê brasileira.
     
Comunista de fato

Dias Gomes sonhou com um Brasil de justiça social, repartição de bens e acesso à terra. Essa raiz está na juventude quando observava os movimentos estourarem em busca de uma nação sem coronéis. A sua filiação ao Partido Comunista se deu por pura ideologia, e o teatro passou a ser o maior laboratório dessa revolução. Como intelectual de esquerda, chegou a visitar Cuba pós-revolução e ir a União Soviética em plena Guerra Fria. O suficiente para entrar numa lista de procurados quando o golpe militar foi instaurado em 1964. Chegou a ficar escondido de casa em casa e viu, seguidamente, ter os seus textos picotados em pedaços.   
A decepção com a esquerda comunista veio seguidamente. Primeiro, com a divulgação do Relatório Krushev, que denunciava os crimes de Stálin.
— As primeiras notícias eram imprecisas e nos deixavam confusos. Por fim, o relatório completo que nos nocauteou a todos. Parecia inacreditável. Haviam-me feito acreditar na integridade de um regime capaz de abrigar um monstro. E esse monstro era o “Pai” Stalin.
A desfiliação ao partido ocorreu naturalmente no começo dos anos 1970. Poderia ter ocorrido antes. Dias Gomes não quis se desvincular para não parecer pressão da censura. Após, quase 30 anos de militância, tranquilamente, o autor chegava à conclusão que não era o militante que o partido desejara.

— Certa vez, numa entrevista defini-me como anarco-marxista-ecumênico-sensual. Conservando ainda os mesmos ideai que me haviam levado ao partido, era obrigado a reconhecer que nunca me ajustara à disciplina partidária, que ela me incomodava e me tolhia.

GALERIA DE TIPOS:

Bicheiro Tucão O bicheiro de Bandeira 2 foi uma criação ousada de Dias Gomes para o começo da revolução das telenovelas brasileiras. A TV Globo queria que o papel fosse do astro Sergio Cardoso, cujo contrato permitia tudo, até reescrever o texto. Sergio leu alguns capítulos e renegou o papel, alegando que não estava à sua altura. O impasse fez com que Dias Gomes ameaçasse sair da TV Globo caso o intérprete se arrependesse. O assunto foi parar na cúpula da TV Globo, e Dias sugeriu o nome de Paulo Gracindo, até então sem o respeito devido na profissão. Foi um estouro.     

Odorico Paraguaçu — 


Procópio Ferreira tinha vivido sem sucesso Odorico no teatro. A adaptação para a tevê foi um desafio e uma recriação. Coube a Paulo Gracindo, ator preferido de Dias Gomes, dar a embocadura ao tipo que virou a cara do mau político brasileiro. O personagem, vivo no imaginário do brasileiro, é sucesso hoje nas redes sociais. 

Viúva Porcina — 




 Dias Gomes inspirou-se em mulher que conheceu na época que morava em pensões no Rio. Regina Duarte, que fez a segunda versão, era uma atriz querida por ele. Na década de 1960, ele tentou emplacá-la como Branca Dias, de O santo inquérito, mas o diretor Ziembinski, por preconceito, vetou o nome da então jovem atriz. A personagem promoveu guinada na carreira da intérprete, tida até então como A Namoradinha do Brasil.  

João Gibão — 



O protagonista de Saramandaia tinha asas que precisavam ser aparadas para ele não voar. Era uma metáfora potente em tempos de ditadura, torturas, mortes e exílios. Dias Gomes sofreu patrulhamento intelectual, que o acusou em copiar o estilo do realismo fantástico em moda na época na América do Sul. Havia, porém, traços fortes desse gênero desde cedo em sua obra. A própria promessa de Zé do Burro era absurda e o mote eleitoreiro de Odorico (em construir um cemitério), surreal.

Zé do Burro — O personagem, protagonista de O pagador de promessas, seria inspirado numa promessa que a mãe de Dias Gomes, dona Alice, fez para que seu filho Guilherme passasse em medicina. Ela jurou assistir à missa em cada igreja de Salvador. O que parecia uma loucura, já que a capital baiana tem fama de ter uma igreja para cada dia. A peça era para ser feita pelo Teatro dos Sete, de Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Gianni Rato, Sergio Britto e Ítalo Rossi, mas a demora fez com que Dias procurasse Franco Zampari, que quis produzir imediatamente no TBC. Dias conta que Fernanda Montenegro teria ficado chateada. E, tempos depois, dito, num evento social: “Dias, você nos traiu.” Zé do Burro foi imortalizado no cinema, e no teatro, por Leonardo Villar.    






     Alegria e
tristeza

O pagador de promessas, o filme, satisfez plenamente Dias Gomes. Anselmo Duarte respeitou a peça, e Dias participou até das escolhas das locações. O mesmo não ocorreu com a minissérie que foi ao ar na TV Globo em 1988. Por pressão da bancada ruralista, 10 capítulos foram censurados e obra perdeu uma forte crítica à questão da terra. A peça, que foi encenada em vários países do mundo, é obra-prima de Dias Gomes.   

O bem-amado






Dias Gomes: obra influencia até os dias de hoje // Crédito //  Arquivo Rede Globo


Viva e atemporal, a obra de Dias Gomes, um dos responsáveis por abrasileira o teatro nacional, é legado que resiste ao tempo. Ainda neste semestre, a TV Globo reedita Saramandaia

Sérgio Maggio
Especial para o Correio

A madrugada de 18 de maio de 1999 foi cruel com a dramaturgia nacional. Um acidente brutal interrompeu a escrita de um homem que estava na linha de frente de uma geração que abrasileirou peças, novelas e filmes. Tinha 76 anos quando teve a vida engolfada por uma estúpida imprudência de trânsito. No choque mortal com o ônibus, perdeu-se a genialidade de Dias Gomes, cuja escrita de traço universal ainda pulsa e reverbera. Ainda neste semestre, a TV Globo remonta um dos maiores sucessos: Saramandaia, a novela assentada no realismo fantástico sul-americano, que alegrou um triste Brasil de 1976. Em plena ditadura militar, o espectador arregalou os olhos para testemunhar João Gibão voar, livre como um pássaro fora da gaiola, sobre uma cidade dominada por coronéis, que colocavam formigas pelas narinas. Parecia um sonho, como, aliás, foi movida a trajetória desse autor sem fronteiras de linguagem.
— Consigo pilotar meu barco ao sabor dos ventos, mas sei que há muito mar pela frente. Talvez nunca chegue ao porto. Tomara mesmo que não, pois o melhor da viagem é estar nela, escreveu Dias Gomes na autobiografia Apenas um subversivo, publicada um ano antes da morte.
Dias Gomes era um menino quando chegou ao Rio de Janeiro num esquisito tempo de entre guerras. Cresceu num o país vigiado pela ditadura getulista. Ali, em 1942, a cabeça fervilhava de ideias, algumas politicamente perigosas para a época. Mesmo sem querer pegar em armas, o rapazote corria riscos. Queria fazer teatro. Não sabia ainda que a dramaturgia seria a munição para o incômodo que estaria por vir. Dias Gomes se tornaria um dos mais censurados autores do país.
Nesse ano incerto de 1942, o jovem andava pelo burburinho cultural da Cinelândia e sonhava ter o nome estampado nos letreiros luminosos. Um dia, respirou fundo e entregou textos para duas figuras míticas da cena nacional: os rivais Jayme Costa e Procópio Ferreira. Os dois ainda trabalhavam como se fossem vedetes tradicionais. Não participavam de ensaios diários, só apareciam às vésperas das estreias para aprender as marcas espaciais do palco e não compreendiam o texto como um todo, dependendo do tradicional Ponto, aquele profissional que soprava o texto da coxia.

 Menos intelectual, Jayme Costa ficou reticente com o primeiro texto entregue por aquele jovem, Amanhã será outro dia. Então, fez um desafio ao rapaz. Pediu para que ele escrevesse uma sátira à peça Deus lhe pague, de Joracy Camargo, o primeiro sucesso teatral genuinamente brasileiro naquela metade de século, protagonizado extraordinariamente pelo desafeto, Procópio Ferreira. Dias Gomes correu e concebeu Pé de cabra. O ator leu e ficou com medo danado de ter problemas com o Departamento de Imprensa e Propaganda, o temido DIP. A peça acabou nas mãos de Procópio. E lógico, foi devidamente censurada. Dez páginas cortadas e o autor taxado de marxista sem nunca ter lido Karl Marx.
— Na noite de estreia, o público aplaudiu de pé quando Procópio me chamou no palco. Houve mesmo um “oh”, quando ele revelou que tinha apenas 19 anos. Talvez, a minha pouca idade para que os críticos não enxergassem os defeitos do meu texto e exagerassem as suas qualidades, escreveu Dias Gomes.

Premonição

Crítico tradicional do jornal Amanhã, Viriato Corrêa não só alardeou aos quatro cantos as maravilhas da montagem como também fez um trocadilho premonitório: “Mais dias menos dias, Dias Gomes será o escritor mais festejado da cena brasileira”. Demoraria quase duas décadas para atestar a previsão. Em 1960, todos estariam aos pés de Dias Gomes com a montagem de O pagador de promessa, produzida pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), até então marcado pelas adaptações de textos internacionais. O espetáculo renderia uma chuva de prêmios para o autor, o diretor Flávio Rangel e o ator Leonardo Villar, como Zé do Burro, que dividia o palco com intérpretes do porte de Cleyde Yáconis, Stênio Garcia e Nathália Timberg.
     — A partir do TBC, O pagador de promessa iniciou vitoriosa carreira em que alcançou unanimidade crítica, tanto no país como no exterior. Lembro-me apenas de um crítico que lhe fez algumas restrições, Bárbara Heliodora.
O sucesso da peça transformou Dias Gomes num autor requisitado. Em 1962, os inquietos artistas do Teatro de Ipanema, comandado por Ivan Albuquerque e Rubens Corrêa, montariam A invasão, no mesmo ano em que O pagador de promessas cumpria a façanha de ganhar a Palma de Ouro, em Cannes. O povo estava virando protagonistas dos palcos e esta, talvez, seja a maior contribuição do autor, num tempo em que era preciso encontrar uma identidade nacional diante da ameaça armada dos militares. O berço do herói e Santo inquérito justificariam a fase frutífera do dramaturgo, que seria abatida pelo censura implacável. A primeira foi interditada às vésperas da estreia, a segunda, reflexo da perseguição, surgiu em forma de parábola quase histórica, ambientada na inquisição católica.
— Iniciava-se um período de trevas. Muitos achavam que não duraria seis meses — mas durou 20 anos. Curiosamente, o teatro foi eleito perigoso inimigo do novo regime. Talvez, porque fossem das casas de espetáculos, das assembleias que aí se realizavam, dos manifestos que delas resultavam que partiam os primeiros protestos contra a ditadura instalada, escreveu Dias Gomes.