Projeto concebido originalmente para a área de Ideias do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Brasília, Mitos do Teatro Brasileiro é calcado na memória das artes cênicas nacionais.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Morre Fernando Peixoto, mestre do teatro brechtiano


Fernando Peixoto, teatrólogo

Sérgio Maggio

Parte do conhecimento e reflexões sobre Bertolt Brecht no Brasil deve-se ao instigante pensamento do ator, diretor e pesquisador Fernando Peixoto, um nome essencial na modernização do teatro brasileiro, estando ligado ao anárquico Teatro Oficina, em sua fase antropofágica — época que atuou ao lado da então companheira, a atriz Íttala Nandi. Ontem, o homem que ajudou a desvendar as chaves do teatro dialético no país morreu, aos 75 anos, em São Paulo, vítima de câncer no intestino.
“O Brasil acaba de perder um dos maiores pensadores de teatro, o diretor, ator, escritor e professor Fernando Peixoto. Suas reflexões sobre o teatro internacional e sua contribuição ao teatro brasileiro, na segunda metade do século 20, foram fundamentais. Ele manteve até o fim da vida a relação de apoio e orientação aos novos atores, diretores e grupos. O Ministério da Cultura sente profundamente esta perda”, lamentou, em nota oficial Vitor Ortiz, ministro interino.
Fernando Peixoto participou das grandes montagens do Teatro Oficina nos anos 1960, todas comandadas por José Celso Martinez Corrêa, entre elas, O rei da vela, peça histórica que fundou as bases do teatro antropofágico, e as brechtianas Galileu Galilei e Na selva das cidades. Membro do Partido Comunista do Brasil sofreu com o cerco da ditadura militar, que sucateou o teatro brasileiro de resistência na década de 1970. Um dos seus espetáculos, Calabar, texto de Chico Buarque e Ruy Guerra, foi proibido de estrear, em 1973, dias antes de abrir o pano. Essa produção só foi possível ser realizada em 1980.
Fernando Peixoto manteve-se na ativa incansável tanto na produção teórica quanto na prática, tornando-se uma referência para os estudos teatrais na América Latina.


Verbete Itaú Cultural

Fernando Amaral dos Guimarães Peixoto (Porto Alegre RS 1937). Diretor, teórico e ator. Homem de teatro, radicado em São Paulo, ligado ao Teatro Oficina como ator em sua primeira fase. Torna-se, a partir dos anos 1970, diretor especialmente empenhado no teatro de resistência. Reconhecido teórico, autor de obras vinculadas às concepções brechtianas e da tendência nacional - popular do teatro brasileiro.


Inicia carreira como ator em Porto Alegre, em 1953, envolvido com o teatro semiprofissional de então, onde faz Feliz Viagem a Trenton, de Thornton Wilder, em 1954; O Muro, de Jean-Paul Sartre, em 1955; e Egmont, de Goethe, com direção de Ruggero Jacobbi, em 1958. Faz substituições em espetáculos de importantes companhias paulistas que excursionam na cidade, tais como O Canto da Cotovia, de Jean Anouilh, direção de Gianni Ratto, do Teatro Maria Della Costa - TMDC, em 1957; Leonor de Mendonça, direção de Flávio Rangel; Um Panorama Visto da Ponte, direção de Alberto D'Aversa, ambas do Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, em 1960; além de Mãe Coragem, de Bertolt Brecht, na produção de Ruth Escobar, no mesmo ano. Muda -se com sua mulher Ítala Nandi para São Paulo em 1963, integrando a companhia Teatro Oficina.

Suas participações no Oficina tornam-se marcantes, em todas as produções desde então: Quatro num Quarto, de Valentin Kataev, com direção de Maurice Vaneau, em 1962; Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, em 1963; Andorra, de Max Frisch, em 1964; O Rei da Vela, de Oswald de Andrade (1890 - 1954), em 1967; Galileu Galilei, de Bertolt Brecht, em 1968, e Na Selva das Cidades, de Bertolt Brecht, em 1969, todas direções de José Celso Martinez Corrêa. Deixa a companhia em 1970.

Em 1969, está no elenco do Teatro de Arena nas excursões internacionais de Arena Conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, e Arena Conta Bolívar, também de Boal. Retorna no papel de Jean-Paul Sartre em A Cerimônia do Adeus, de Mauro Rasi, direção de Ulysses Cruz, em 1989. Sob a direção de Antônio Abujamra, está em O Inspetor Geral, em 1994, pelo Teatro Popular do Sesi - TPS.

Embora tenha experimentado a direção desde os anos 1960, estréia com Matar, de Paulo Hecker Filho, em 1959, ainda em Porto Alegre. Sua atuação nessa área ganha impulso após O Poder Negro, de LeRoi Jones (Amiri Baraka), em 1968, e D. Juan, adaptado de Molière, em 1970, ambas no Oficina. Com Tambores da Noite, de Bertolt Brecht, em 1972, inicia carreira como encenador fortemente influenciada pelas idéias do autor alemão. Suas principais realizações como diretor são: A Semana - Esses Intrépidos Rapazes e Sua Maravilhosa Semana de Arte Moderna, de Carlos Queiroz Telles, em 1972; Frank V, de Dürrenmatt, em 1973; Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1973, mesmo ano em que dirige Calabar, texto de Chico Buarque e Ruy Guerra, numa produção carioca de Fernando Torres, proibida poucos dias antes da estréia; Ponto de Partida, novamente Guarnieri, em 1976; Mortos Sem Sepultura, de Jean-Paul Sartre, em 1977; Terror e Miséria do III Reich, de Bertolt Brecht, em 1979, coroam o ciclo de realizações.

Em 1980, finalmente liberado pela Censura, coloca em cena Calabar, numa produção de Othon Bastos e Martha Overbeck, em parceria com Renato Borghi. Dirige várias óperas, entre as quais Werther, de Massenet, em 1979; Wozzeck, de Alan Berg, em 1982; O Navio Fantasma, de Wagner, em 1984; Lo Schiavo, de Carlos Gomes, e Mme. Butterfly, de Puccini, em 1986; além de Café, música de Koellreuter e texto de Mário de Andrade, em Santos, 1996.

Fernando Peixoto é autor de ensaios, textos teóricos, tradutor, professor e dirigente de coleções nas editoras Paz e Terra e Hucitec, marca um dos raros casos de simultaneidade na produção artística e teórica.

Como jornalista, no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, entre 1957 e 1959, escreve sobre teatro, cinema e cultura. Atividade que continuará em alguns importantes órgãos da imprensa de resistência nas décadas de 1970 e 1980, como Opinião; Movimento; Revista Civilização Brasileira; A Voz da Unidade; Argumento; Debate & Crítica, etc.

Traduz os livros O Teatro e Sua Realidade, de Bernard Dort, em 1977, e Berliner Ensemble: Um Trabalho Teatral em Defesa da Paz, em 1985; além de muitos textos dramáticos, como Pequenos Burgueses, Vassa Geleznova, Um Mês no Campo, D. Juan, Mortos Sem Sepultura, Tupac Amaru, Na Selva das Cidades, sendo um dos organizadores da edição do Teatro Completo de Brecht no Brasil, para a qual traduz diversas peças.

São de sua autoria, entre outros, os livros Brecht, Vida e Obra, em 1968; Maiakóvski, Vida e Obra, em 1969; O Que É Teatro, em 1980; Brecht: Uma Introdução ao Teatro Dialético, em 1981; Teatro Oficina; Trajetória de uma Rebeldia, 1982; Vianninha: Teatro, Televisão, Política, em 1983; Ópera e Encenação, em 1986; Brecht no Brasil, em 1987; Teatro em Movimento, em 1988; Teatro em Questão, em 1989; Um Teatro Fora do Eixo, 1993; O Melhor Teatro do CPC da UNE, em 1990; Teatro em Aberto, em 2002.

Pelas direções de Um Grito Parado no Ar e Frank V, em 1973, recebe os prêmios APCA e Molière.

No cinema, atua em diversas películas, entre as quais Bebel, Garota Propaganda, de Maurice Capovilla, em 1967; Gamal - o Delírio do Sexo, de João Batista de Andrade, em 1969; Fogo Morto, de Marcos Farias, em 1975; A Queda, de Ruy Guerra, em 1976; Doramundo, de João Batista de Andrade, em 1977; O Homem do Pau-Brasil, de Joaquim Pedro de Andrade, e Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman, ambos de 1980; assim como O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco, em 1984, e Faca de Dois Gumes, de Murilo Salles, em 1988.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A grande vedete




Microssérie desvenda ao grande público a importância de Dercy Gonçalves para a renovação do teatro de comédia no Brasil


Sérgio Maggio

A campanha publicitária que antecede a estreia de Dercy de verdade aponta que hoje o grande público brasileiro vai descortinar a vida de uma das mais importantes comediantes do país. A autora Maria Adelaide Amaral vai levar à tela a saga humana da menina que escapou dos horrores machistas do início do século 20 e tornou-se uma das maiores estrelas do país. Ao fim da microssérie de quatro capítulos (no ar de hoje a sexta, na TV Globo), o telespectador terá outra imagem, que vai colocar por terra o estereótipo da senhora desbocada e sem limites que marcou as últimas décadas de vida da artista centenária.
No interior dessa estratégia, que marcou concepção do livro Dercy de cabo a rabo, escrito por Maria Adelaide Amaral em 1994 e agora relançado, há uma revelação mais contundente para a grande audiência, sobretudo as novas gerações acostumadas a lidar porcamente com a memória nacional. Dercy Gonçalves (na trama, ela será vivida por Fafy Siqueira, Heloísa e Luiza Perissé) foi uma das maiores artistas do teatro brasileiro. Ela deu à comédia uma picardia brasileira ao incorporar, com talento incomum, o improviso num tempo que o teatro nacional estava completamente preso a velhas formas, como o uso do “ponto” (na trama, vivido por Emiliano Queiroz), aquela figura que murmurava o texto teatral para o ator recitar.
Dercy mandou às favas um jeito requentado de se fazer teatro no Brasil. Se não fosse a vedete da companhia, o ator andava completamente marcado e sem falas decoradas. Não podia desobedecer o texto nem tampouco sair do que fosse combinado com o encenador. A presença coadjuvante funcionava apenas em função da estrela maior, que atuava à frente, na ribalta, sob os holofotes. A anarquia dessa jovem atriz, que começa pelas companhias mambembes, estremece essas relações. “O maior desespero dos críticos , quando comecei a fazer comédias, era saber onde o autor acabava e a atriz começava. Alguns ficavam enlouquecidos com a minha improvisação”, relata Dercy no livro de Maria Adelaide Amaral.

Teatro do rebolado
Apesar desse enfoque humano para destruir o estigma de “velha que fala palavrões”, Dercy de verdade trará o teatro brasileiro de uma época como pano de fundo. Figuras que hoje estão esquecidas, como Walter Pinto (interpretado pelo ator Eduardo Galvão), surgem ao lado de uma efervescente Praça Tiradentes, que foi o território do apogeu e da queda do teatro de revista ou rebolado, tendo o Teatro Recreio como templo maior. Ali, Dercy Gonçalves foi rainha companhia própria e desenvolveu um estilo impagável, contrapondo-se aos shows bem acabados, de padrão internacional, do empresário Walter Pinto, responsável por renovar o gênero no país. No desafio de contar mais de 100 anos de vida em quatro capítulos, importantes personagens ficarão de fora, como Jardel Jércolis (pai do excepcional ator Jardel Filho), um dos artífices do teatro de revista no país.
Até conquistar o estrelato e enfrentar toda série de dificuldades, Dercy Gonçalves passou por circos e cabarés. Uma das principais casa de shows, a Casa de Caboclo, onde Noel Rosa se apresentava, surge no começo de carreira, quando Dercy fazia dupla com Eugênio Pascoal (Fernando Eiras), em Os Pascoalinos, logo depois de fugir de Santa Maria Madalena com a Companhia de Maria Castro. Um dos números mais marcantes era a canção Malandrinha (“Oh, linda imagem de mulher que me seduz/ Ai se eu pudesse estaria no altar/ És a rainha dos meus sonhos, és a luz/ És malandrinha, não precisas trabalhar”). Quando Dercy ouviu essa canção, ainda era a menina Dolores Gonçalves Costa e nem sonhava em se tornar um dos mitos do teatro brasileiro.



“Inaugurei o escracho no teatro brasileiro”
Dercy Gonçalves



DERCY DE VERDADE
Microssérie em quatro capítulos. De hoje a sexta, às 23h30, na TV Globo.

DERCY DE CABO A RABO
Edição revista e ampliada de Maria Adelaide Amaral. Editora Globo, 320 páginas.