Sérgio Maggio
Parte do conhecimento e reflexões sobre Bertolt Brecht no Brasil deve-se ao instigante pensamento do ator, diretor e pesquisador Fernando Peixoto, um nome essencial na modernização do teatro brasileiro, estando ligado ao anárquico Teatro Oficina, em sua fase antropofágica — época que atuou ao lado da então companheira, a atriz Íttala Nandi. Ontem, o homem que ajudou a desvendar as chaves do teatro dialético no país morreu, aos 75 anos, em São Paulo, vítima de câncer no intestino.
“O Brasil acaba de perder um dos maiores pensadores de teatro, o diretor, ator, escritor e professor Fernando Peixoto. Suas reflexões sobre o teatro internacional e sua contribuição ao teatro brasileiro, na segunda metade do século 20, foram fundamentais. Ele manteve até o fim da vida a relação de apoio e orientação aos novos atores, diretores e grupos. O Ministério da Cultura sente profundamente esta perda”, lamentou, em nota oficial Vitor Ortiz, ministro interino.
Fernando Peixoto participou das grandes montagens do Teatro Oficina nos anos 1960, todas comandadas por José Celso Martinez Corrêa, entre elas, O rei da vela, peça histórica que fundou as bases do teatro antropofágico, e as brechtianas Galileu Galilei e Na selva das cidades. Membro do Partido Comunista do Brasil sofreu com o cerco da ditadura militar, que sucateou o teatro brasileiro de resistência na década de 1970. Um dos seus espetáculos, Calabar, texto de Chico Buarque e Ruy Guerra, foi proibido de estrear, em 1973, dias antes de abrir o pano. Essa produção só foi possível ser realizada em 1980.
Fernando Peixoto manteve-se na ativa incansável tanto na produção teórica quanto na prática, tornando-se uma referência para os estudos teatrais na América Latina.
Verbete Itaú Cultural
Fernando Amaral dos Guimarães Peixoto (Porto Alegre RS 1937). Diretor, teórico e ator. Homem de teatro, radicado em São Paulo, ligado ao Teatro Oficina como ator em sua primeira fase. Torna-se, a partir dos anos 1970, diretor especialmente empenhado no teatro de resistência. Reconhecido teórico, autor de obras vinculadas às concepções brechtianas e da tendência nacional - popular do teatro brasileiro.
Inicia carreira como ator em Porto Alegre, em 1953, envolvido com o teatro semiprofissional de então, onde faz Feliz Viagem a Trenton, de Thornton Wilder, em 1954; O Muro, de Jean-Paul Sartre, em 1955; e Egmont, de Goethe, com direção de Ruggero Jacobbi, em 1958. Faz substituições em espetáculos de importantes companhias paulistas que excursionam na cidade, tais como O Canto da Cotovia, de Jean Anouilh, direção de Gianni Ratto, do Teatro Maria Della Costa - TMDC, em 1957; Leonor de Mendonça, direção de Flávio Rangel; Um Panorama Visto da Ponte, direção de Alberto D'Aversa, ambas do Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, em 1960; além de Mãe Coragem, de Bertolt Brecht, na produção de Ruth Escobar, no mesmo ano. Muda -se com sua mulher Ítala Nandi para São Paulo em 1963, integrando a companhia Teatro Oficina.
Suas participações no Oficina tornam-se marcantes, em todas as produções desde então: Quatro num Quarto, de Valentin Kataev, com direção de Maurice Vaneau, em 1962; Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, em 1963; Andorra, de Max Frisch, em 1964; O Rei da Vela, de Oswald de Andrade (1890 - 1954), em 1967; Galileu Galilei, de Bertolt Brecht, em 1968, e Na Selva das Cidades, de Bertolt Brecht, em 1969, todas direções de José Celso Martinez Corrêa. Deixa a companhia em 1970.
Em 1969, está no elenco do Teatro de Arena nas excursões internacionais de Arena Conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, e Arena Conta Bolívar, também de Boal. Retorna no papel de Jean-Paul Sartre em A Cerimônia do Adeus, de Mauro Rasi, direção de Ulysses Cruz, em 1989. Sob a direção de Antônio Abujamra, está em O Inspetor Geral, em 1994, pelo Teatro Popular do Sesi - TPS.
Embora tenha experimentado a direção desde os anos 1960, estréia com Matar, de Paulo Hecker Filho, em 1959, ainda em Porto Alegre. Sua atuação nessa área ganha impulso após O Poder Negro, de LeRoi Jones (Amiri Baraka), em 1968, e D. Juan, adaptado de Molière, em 1970, ambas no Oficina. Com Tambores da Noite, de Bertolt Brecht, em 1972, inicia carreira como encenador fortemente influenciada pelas idéias do autor alemão. Suas principais realizações como diretor são: A Semana - Esses Intrépidos Rapazes e Sua Maravilhosa Semana de Arte Moderna, de Carlos Queiroz Telles, em 1972; Frank V, de Dürrenmatt, em 1973; Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1973, mesmo ano em que dirige Calabar, texto de Chico Buarque e Ruy Guerra, numa produção carioca de Fernando Torres, proibida poucos dias antes da estréia; Ponto de Partida, novamente Guarnieri, em 1976; Mortos Sem Sepultura, de Jean-Paul Sartre, em 1977; Terror e Miséria do III Reich, de Bertolt Brecht, em 1979, coroam o ciclo de realizações.
Em 1980, finalmente liberado pela Censura, coloca em cena Calabar, numa produção de Othon Bastos e Martha Overbeck, em parceria com Renato Borghi. Dirige várias óperas, entre as quais Werther, de Massenet, em 1979; Wozzeck, de Alan Berg, em 1982; O Navio Fantasma, de Wagner, em 1984; Lo Schiavo, de Carlos Gomes, e Mme. Butterfly, de Puccini, em 1986; além de Café, música de Koellreuter e texto de Mário de Andrade, em Santos, 1996.
Fernando Peixoto é autor de ensaios, textos teóricos, tradutor, professor e dirigente de coleções nas editoras Paz e Terra e Hucitec, marca um dos raros casos de simultaneidade na produção artística e teórica.
Como jornalista, no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, entre 1957 e 1959, escreve sobre teatro, cinema e cultura. Atividade que continuará em alguns importantes órgãos da imprensa de resistência nas décadas de 1970 e 1980, como Opinião; Movimento; Revista Civilização Brasileira; A Voz da Unidade; Argumento; Debate & Crítica, etc.
Traduz os livros O Teatro e Sua Realidade, de Bernard Dort, em 1977, e Berliner Ensemble: Um Trabalho Teatral em Defesa da Paz, em 1985; além de muitos textos dramáticos, como Pequenos Burgueses, Vassa Geleznova, Um Mês no Campo, D. Juan, Mortos Sem Sepultura, Tupac Amaru, Na Selva das Cidades, sendo um dos organizadores da edição do Teatro Completo de Brecht no Brasil, para a qual traduz diversas peças.
São de sua autoria, entre outros, os livros Brecht, Vida e Obra, em 1968; Maiakóvski, Vida e Obra, em 1969; O Que É Teatro, em 1980; Brecht: Uma Introdução ao Teatro Dialético, em 1981; Teatro Oficina; Trajetória de uma Rebeldia, 1982; Vianninha: Teatro, Televisão, Política, em 1983; Ópera e Encenação, em 1986; Brecht no Brasil, em 1987; Teatro em Movimento, em 1988; Teatro em Questão, em 1989; Um Teatro Fora do Eixo, 1993; O Melhor Teatro do CPC da UNE, em 1990; Teatro em Aberto, em 2002.
Pelas direções de Um Grito Parado no Ar e Frank V, em 1973, recebe os prêmios APCA e Molière.
No cinema, atua em diversas películas, entre as quais Bebel, Garota Propaganda, de Maurice Capovilla, em 1967; Gamal - o Delírio do Sexo, de João Batista de Andrade, em 1969; Fogo Morto, de Marcos Farias, em 1975; A Queda, de Ruy Guerra, em 1976; Doramundo, de João Batista de Andrade, em 1977; O Homem do Pau-Brasil, de Joaquim Pedro de Andrade, e Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman, ambos de 1980; assim como O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco, em 1984, e Faca de Dois Gumes, de Murilo Salles, em 1988.