Dias Gomes e a revolução das telenovelas // Crédito Arquivo Rede Glo |
Nas novelas, Dias Gomes conquistou o país com tipos brasileiros. Comunista desde a juventude, autor foi perseguido trama a trama
SÉRGIO MAGGIO
Dias Gomes sonhava em viver de teatro. Mas a ditadura militar o acossou. A censura perseguia cada linha do texto. Por conta de suas ligações com o Partido Comunista, respondia a inúmeros inquéritos. A situação financeira era delicada. Quem sustentava a casa era a mulher, Janete Clair, que escrevia novelas na TV Globo com relativo sucesso, sucedendo a era de folhetins importados, comandados pela cubana Gloria Magadan. Não havia saída. O caminho era mesmo escrever novelas e enfrentar o patrulhamento ideológico e feroz da esquerda. Afinal, a televisão era tida como um meio alienante e aliado ao sistema.
— Arrebanhei minhas personagens, meu pequeno universo, e, como quem muda de casa, mas conserva a mobília, lancei-me a aventura, contava Dias.
Com a utopia de um teatro popular como lastro, Dias Gomes foi alterando as regras do jogo na tevê brasileira. A revolução da teledramaturgia que ocorrerá nos anos 1970 está diretamente ligada ao seu repertório. O bicheiro Tucão, de Bandeira 2, o prefeito Odorico Paraguaçu, de O bem-amado, o homem de asas João Gibão, de Saramandaia. Eles saíram todos do imaginário popular, que já havia feito uma transformação no palco nacional. Agora, provocava uma identificação imediata com o telespectador, que se agarrava a telinha, chegando a dar 100% de audiência.
As novelas de Dias Gomes não faziam o jogo político do conformismo. Volta e meia, ele era intimado a depor, sobretudo, por conta da fama de comunista. A proibição da primeira versão de Roque Santeiro, programada para 1975, tem a ver com esse passado. Sem saber que o telefone estava grampeado, Dias Gomes revelou, ironicamente, que a novela era a adaptação de O berço do herói, peça odiada pelos militares e que, em formato novelístico, passaria despercebida, já que os censores eram seres afamados pela inteligência restrita. Resultado: a novela foi proibida no dia da estreia, com a TV Globo enfrentando a ditadura ao convocar o apresentador Cid Moreira para ler editorial ao vivo ao fim do Jornal Nacional. Roque Santeiro voltaria em 1986 para se tornar um dos fenômenos da tevê brasileira.
Comunista de fato
Dias Gomes sonhou com um Brasil de justiça social, repartição de bens e acesso à terra. Essa raiz está na juventude quando observava os movimentos estourarem em busca de uma nação sem coronéis. A sua filiação ao Partido Comunista se deu por pura ideologia, e o teatro passou a ser o maior laboratório dessa revolução. Como intelectual de esquerda, chegou a visitar Cuba pós-revolução e ir a União Soviética em plena Guerra Fria. O suficiente para entrar numa lista de procurados quando o golpe militar foi instaurado em 1964. Chegou a ficar escondido de casa em casa e viu, seguidamente, ter os seus textos picotados em pedaços.
A decepção com a esquerda comunista veio seguidamente. Primeiro, com a divulgação do Relatório Krushev, que denunciava os crimes de Stálin.
— As primeiras notícias eram imprecisas e nos deixavam confusos. Por fim, o relatório completo que nos nocauteou a todos. Parecia inacreditável. Haviam-me feito acreditar na integridade de um regime capaz de abrigar um monstro. E esse monstro era o “Pai” Stalin.
A desfiliação ao partido ocorreu naturalmente no começo dos anos 1970. Poderia ter ocorrido antes. Dias Gomes não quis se desvincular para não parecer pressão da censura. Após, quase 30 anos de militância, tranquilamente, o autor chegava à conclusão que não era o militante que o partido desejara.
GALERIA DE TIPOS:
Bicheiro Tucão — O bicheiro de Bandeira 2 foi uma criação ousada de Dias Gomes para o começo da revolução das telenovelas brasileiras. A TV Globo queria que o papel fosse do astro Sergio Cardoso, cujo contrato permitia tudo, até reescrever o texto. Sergio leu alguns capítulos e renegou o papel, alegando que não estava à sua altura. O impasse fez com que Dias Gomes ameaçasse sair da TV Globo caso o intérprete se arrependesse. O assunto foi parar na cúpula da TV Globo, e Dias sugeriu o nome de Paulo Gracindo, até então sem o respeito devido na profissão. Foi um estouro.
Odorico Paraguaçu —
Viúva Porcina —
Dias Gomes inspirou-se em mulher que conheceu na época que morava em pensões no Rio. Regina Duarte, que fez a segunda versão, era uma atriz querida por ele. Na década de 1960, ele tentou emplacá-la como Branca Dias, de O santo inquérito, mas o diretor Ziembinski, por preconceito, vetou o nome da então jovem atriz. A personagem promoveu guinada na carreira da intérprete, tida até então como A Namoradinha do Brasil.
João Gibão —
Zé do Burro — O personagem, protagonista de O pagador de promessas, seria inspirado numa promessa que a mãe de Dias Gomes, dona Alice, fez para que seu filho Guilherme passasse em medicina. Ela jurou assistir à missa em cada igreja de Salvador. O que parecia uma loucura, já que a capital baiana tem fama de ter uma igreja para cada dia. A peça era para ser feita pelo Teatro dos Sete, de Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Gianni Rato, Sergio Britto e Ítalo Rossi, mas a demora fez com que Dias procurasse Franco Zampari, que quis produzir imediatamente no TBC. Dias conta que Fernanda Montenegro teria ficado chateada. E, tempos depois, dito, num evento social: “Dias, você nos traiu.” Zé do Burro foi imortalizado no cinema, e no teatro, por Leonardo Villar.
Alegria e
tristeza
O pagador de promessas, o filme, satisfez plenamente Dias Gomes. Anselmo Duarte respeitou a peça, e Dias participou até das escolhas das locações. O mesmo não ocorreu com a minissérie que foi ao ar na TV Globo em 1988. Por pressão da bancada ruralista, 10 capítulos foram censurados e obra perdeu uma forte crítica à questão da terra. A peça, que foi encenada em vários países do mundo, é obra-prima de Dias Gomes.